sexta-feira, 26 de outubro de 2012

O que será o serviço público?


Num período em que muito se aborda a questão das privatizações, relativamente à qual a RTP é um ponto nevrálgico, parece-me relevante uma prévia reflexão sobre o serviço público prestado pela mesma. 
O posicionamento da RTP no mercado das televisões levanta variadas questões. Desde logo é questionável a lealdade da concorrência entre RTP e os restantes dois canais abertos. Será justo um canal que dispõe de financiamento público concorrer com os demais, privados? E que 'serviço público' deve então a RTP providenciar? Será admissível que, dispondo de outros meios de financiamento a RTP tenha publicidade? Que legitimidade tem o canal público para praticar alguns dos salários que pratica? 
Como é sabido, o 'negócio' das televisões gravita em torno das audiências, que potenciam o interesse das marcas em publicitar naquela estação a determinada hora. Por isso, é do interesse das estações captar a maior quota de mercado possível junto dos telespectadores, dado que será esta que lhes trará vantagens financeiras.
Sensacionalismo, figuras populares, rostos bonitos, de tudo isto se faz a estratégia dos canais privados na busca de compradores para o produto que têm a oferecer: tempo de antena. No binómio qualidade dos conteúdos vs rentabilidade dos mesmos, é usual a opção dos canais privados pelo segundo vector. A correcção desta opção é discutível mas não releva para o debate em causa. 
Concorde-se ou não, é este o modelo de negócio dos canais privados. E a RTP? Como se posiciona entre estas premissas? 
Numa breve descrição, que procura ser isenta, diria que a RTP 1 fica num meio caminho entre a pura qualidade dos conteúdos e a rentabilidade dos mesmos. Sendo certo que concursos em horário nobre, ou antes do telejornal, não serão certamente serviços públicos, também é inegável que programas noticiosos sobre as regiões do país durante a tarde, espaços em horário nobre para debate ou uma ficção com um marcado cunho histórico serão exemplos de algum distanciamento face aos demais canais abertos. Mas até que ponto será este o correcto posicionamento da RTP? É isto serviço publico? Bom, a primeira resposta, a quente, será sempre dizer que não. Mas permitam-me que faça por momentos de 'advogado do diabo'. 
Os puristas dirão sempre que a RTP 1, a exemplo das Rádios publicas e das restantes RTP’s, não deveria ter publicidade.  Outros dirão que, a ter publicidade, os ganhos da mesma deveriam ser canalizados para apresentar outro tipo de conteúdos. 
Porém, é importante analisar as consequências desse puro, ou quase puro, 'serviço publico'. 
Desde logo, parece-me claro que a RTP seria insustentável sem as receitas provenientes da publicidade. Mais, e de extrema importância, parece igualmente que essas mesmas receitas permitem que todo um 'universo' RTP, manifestamente de serviço publico (como são as rádios, a RTP 2 ou a RTP internacional) respire e possa existir. 
Depois, quanto a uma hipotética utilização das receitas da RTP para a apresentação de outro tipo de conteúdos, levanta-se outra questão. Embora fosse, naturalmente, um cenário agradável, não levaria isso a um desinteresse por parte dos telespectadores e, com isso, a um decréscimo dessas mesmas receitas de publicidade, levando isso novamente à insustentabilidade dos canais? 
O modelo implementado na RTP parece-me um modelo que, na sua génese, não funciona mal. No fundo, e numa enorme simplificação, parece que a existência de uma RTP1 tal como existe é o 'preço a pagar' pelo serviço claramente público prestado quer pelas rádios quer pelos restantes canais RTP. Mais ainda, o modelo RTP permite empregar um número bem maior de pessoas do que um modelo isento de publicidade ou com menores receitas provenientes da mesma. Não será isto também serviço publico? 
Não se pode, porém, abordar este tipo de questões apenas sob uma visão opinativa, sem recurso a dados concretos. Como tal tomei a liberdade de consultar o relatório e contas da RTP, referente ao ano de 2011, do qual constam alguns dados curiosos.
Desde logo a questão central da publicidade. Em média, no ano de 2011, foram emitidas, por dia, cerca de 5 horas de publicidade. Publicidade essa que constitui cerca de 66% dos rendimentos comerciais da RTP. Do share total do universo RTP, cerca de 28%, quase 22% pertencem à RTP1.
Ao nível dos conteúdos existem alguns dados curiosos como o facto de 81% da emissão da RTP em 2011 ter sido feita em língua portuguesa (nos quais não se incluem os mais de 3% em português do Brasil), ou o facto de ter sido da RTP a liderança na área da informação (que constitui, na minha opinião pessoal, a melhor bitola de qualidade e isenção de um meio de comunicação social). Outro ponto destacado pelo relatório é a exclusividade que o canal apresentou em conteúdos relativos à área de Cultura e conhecimento, Entretenimento e Informação, ou ainda os três eixos de informação definidos para o ano de 2011 que consistuíram no Fado, na Gastronomia e na Cidadania.
Acrescento, a título de curiosidade, que a massa laboral da RTP se fixa, actualmente acima das 2100 pessoas.
Em suma, o Relatório e Contas de 2011 do canal público vem confirmar muito do que aqui já foi explanado.
É óbvio, creio, que muito do que a RTP1 transmite estará longe de ser qualificado de serviço público. Parece-me, ainda assim, que boa parte dessa mesma emissão se aproxima muito mais do serviço público do que as emissões de SIC e TVI.  Concluíndo, é da minha opinião que, no que ao conteúdo da emissão diz respeito, a RTP não sendo perfeita esboça um esforço assinalável por se posicionar numa forma que possa providenciar o maior serviço público possível sem que isso a faça perder as receitas publicitárias que lhe permitem sustentar todo um universo que em torno de si gravita.
Questão diversa já será a de que custos tem este esforço, ou este concurso ao mercado publicitário. E neste ponto surgem dois vectores particularmente relevantes: o da concorrência aos demais canais abertos e dos salários que alguns dos trabalhadores da RTP auferem.
Quanto à primeira questão, será sempre uma questão complexa. Se, por um lado, SIC e TVI são mais livres de praticar os conteúdos visando o alcance do maior volume de receitas possível, partindo à frente da RTP, por outro, o canal público tem financiamento próprio, estatal, que lhe permite outra abordagem ao mercado da publicidade. No tocante a este ponto, parece-me que estas duas vertentes acabam por se contrabalançar, equilibrando um possível desnível no mercado.
Questão mais complexa já será a dos salários. Foi este o ponto de partida para a minha reflexão, conforme demonstra a notícia em anexo. De facto, é contraditório que o vencimento de ‘meia-dúzia’ de apresentadores represente um volume que seria bastante para financiar dezenas de reportagens e documentários que vivem das ‘sobras’ dos orçamentos. Por outro lado, é argumentável, de novo, que são essas ‘estrelas’ que movem a estação. Porém, neste ponto não consigo ter a posição mais radical que defendi anteriormente no que à sustentabilidade da estação diz respeito. Se efectivamente esses rostos serão importantes, será igualmente inegável que neste mundo existe uma certa efemeridade e que tanto a estação depende das pessoas como as pessoas dependerão da estação. Ou seja, creio que será sempre possível recorrer a vencimentos menos elevados para figuras menos mediáticas sem que haja a devida proporção no decréscimo das audiências. Desse modo, será possível uma reafectação de recursos para outras áreas, potenciando o serviço público.
Relativamente à temática da prossecução do interesse público, os professores Marcelo Rebelo de Sousa e André Salgado de Matos apresentam uma perspectiva que me parece interessante expor aqui. Dizem-nos os professores que o interesse público é o norte da administração pública, e que desse facto advém as referências categóricas a interesse público no art.266º/1 CRP e art.4º CPA. O princípio da prossecução do interesse público constitui um dos mais importantes limites à livre decisão administrativa. Significando isto que a administração pública só pode prosseguir o interesse público, e também que esta só pode prosseguir os interesses públicos especificamente definidos por lei para cada actuação concreta normativamente habilitada. Porém (e este ponto assume a maior relevância à luz do exposto anteriormente), explicam os professores, o princípio da prossecução do interesse público não permite definir, em cada caso concreto, qual a melhor forma de o prosseguir. Com efeito, o conceito de interesse público reveste-se de um elevado grau de indeterminação, dando à administração uma ampla margem de livre decisão quanto ao modo de prossecução desse interesse. Não significando isto, ainda assim, que a administração não esteja sujeita ao dever de boa administração (este dever decorre, ao nível do sector empresarial do Estado, do art. 81º,c) CRP). 
Em síntese, do breve resumo da exposição dos professores retira-se que a administração deve prosseguir sempre o interesse público, e tal resulta da própria letra da lei. Porém, e esta é uma evidência que os professores não negam, tal conceito é extremamente dúbio, não sendo possível determinar que medidas se aproximam mais daquela que é a melhor prossecução do interesse público. Assim, existe uma submissão ao princípio da boa administração que, embora possa ter consequências dentro da esfera do mérito da actuação administrativa, não envolve em circunstância alguma a ilegalidade ou invalidada da actuação administrativa.  
Em suma, e várias linhas e parágrafos depois, eu percebi com esta reflexão que neste tema do serviço público não será nem preto nem branco. E creio que o reflectido aqui para a questão da RTP poderá ser aplicável a outras dissertações sobre serviço público. O conceito de serviço público não é estanque e poderá ser interpretado de vários modos. No presente texto eu procurei racionalizar ao máximo o dito conceito, não tendo conseguido (creio que naturalmente) abster-me de dar a minha opinião pessoal.
Pareceu-me relevante reflectir sobre este tema nesta altura visto que o próximo debate será sobre as vantagens e desvantagens dos modelos privatizados e, sendo a questão do serviço público uma questão prévia a esse mesmo debate, considerei relevante lançar este tema como pontapé de saída para o que poderá vir a ser o debate.
A incerteza do tema propicia, ela própria, a debate e, como tal, lanço o repto aos meus colegas para que também eles próprios possam emitir a sua opinião sobre o que é afinal Serviço Público ou dos sacrifícios a fazer para se poder contar com ele.
 
Tiago Quaresma, nº 22115
 
 

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