A questão das fundações, nomeadamente no que concerne seu
enquadramento jurídico, é um ponto bastante denso e complexo, no que ao Direito
administrativo diz respeito. Não cabe neste post (nem me revejo com capacidades
para tal) solucionar o problema nem apresentar uma visão indesmentível. Cabe,
isso sim, tentar passar as traves mestras de um artigo do Dr. Domingos Soares
Farinho, intitulado “PARA ALÉM DO BEM E DO MAL: AS FUNDAÇÕES PÚBLICO-PRIVADAS”,
inserido nos Estudos em Homenagem ao Professor Marcello Caetano, que é um
excelente guia para uma abordagem diferente a esta temática das fundações. A
análise ao artigo é, a meu ver, uma excelente forma de entrar pela realidade
das fundações e tirar umas primeiras conclusões sobre o tema.
O autor começa por falar numa “esquizofrenia” da figura
fundacional, que olhada sob o prisma de direito público é uma coisa, sob o
prisma de direito privado é outra. E, desde logo, é importante frisar um ponto
que para o Dr. Domingos Soares Farinho é absolutamente fulcral: a divisão entre
Direito Público e Direito Privado é insuficiente para definir esta questão das
fundações; a Dicotomia não responde aos problemas que estas levantam, pelo que
é opinião do autor que era conveniente que se desse lugar a um novo regime que
não se moldasse pelos velhos paradigmas. Diz o autor:“As profundas alterações que o
Estado sofreu nos últimos trinta anos e as alterações que continua a sofrer
permitem a emergência de novos paradigmas de organização e funcionamento social
que devem constituir o quadro jurídico-político em que o jurista se deverá
movimentar para tentar compreender a natureza, funcionamento e missão das
fundações neste princípio de século. A díade Estado-Sociedade já não basta para
explicar tudo. E, assim, naturalmente a summa
divisio entre Direito público e direito privado também não bastará ao
jurista que pretende trabalhar sobre a realidade que tem a sua frente”. Ou ainda, citando Pedro Gonçalves, existem
“zonas cinzentas” entre o Direito Público e o Direito Privado que deixam por
definir as fundações. Daí se extrai o título do artigo e do mesmo se retira a
solução do autor: o recurso às fundações Público-Privadas, que não se enquadrando
na dicotomia clássica “Está livre para resolver os reais problemas que nascem e
se colocam ao Estado e Sociedade actuais”.
Mas, então, como classificar a pessoa colectiva fundacional?
A doutrina tem proposto vários critérios , sendo no artigo citada a
sistematização do Professor Carlos Blanco de Morais.
Primeiramente, o critério da Natureza do Acto de Criação,
que não colhe, pelo facto de existirem Fundações qualificadas como de direito
privado, que são criadas pelo Estado através de um acto público, seja sob a
forma de lei seja sob a forma de decreto normativo. E aqui se fala igualmente
no famoso fenómeno da “fuga para o Direito Privado”, que consiste na
prossecução, pelo Estado, de determinados interesses públicos específicos
através de institutos regulados pelo Direito Privado. Os motivos para essa fuga
poderão estar na flexibilidade, competitividade e eficiência do Direito Privado
face ao Direito Público. A este propósito Domingos Soares Farinho refere um
novo modelo, um novo paradigma, que consiste na prossecução partilhada do
interesse público, ou seja, o Estado quer utilizar as mesmas regras que os
sujeitos privados utilizam para prosseguir os mesmos fins que o Estado se
propõe a prosseguir mas que não pode ou não quer assegurar directamente. É
também apresentado o critério dos fins da pessoa colectiva que não tem, para
Domingos Soares Farinho, aceitação. E ainda o terceiro critério, da Relação
Jurídica. Este tornou-se o preferido da doutrina. Diz o critério que uma
fundação controlada por um ente público e dotada de jus imperii deveria ser considerada uma fundação de direito
público, sendo as restantes fundações criadas pelo Estado fundações de Direito
Privado. Porém, o autor do artigo coloca algumas interrogações a estes
argumentos. No que diz respeito ao argumento do controlo por um ente público,
Domingos Soares Farinho considera-o pouco rigoroso e insuficiente, e di-lo
porque “O Estado detém hoje (...) importantes poderes de fiscalização e quase
tutela sobre as fundações de Direito Privado puras”. No tocante ao jus imperii, o autor enfatiza que desde
há muito se entende que as entidades concessionárias detêm determinados poderes
públicos de autoridade.
É então em face do exposto que se deve concluir que nenhum
dos critérios elencados pela doutrina parece suficiente. E tal conclusão não
deve surpreender, visto que, advoga Domingos Soares Farinho, “procurar
critérios para distinguir as fundações entre públicas e privadas seria sempre
tarefa inglória, pois determinadas configurações fundacionais não são aptas a
prosseguir os fins que o direito público ou privado pretendem regular”.
É deste modo, findas as considerações gerais e as tentativas
de estabelecimento de critérios de distinção entre as fundações de Direito
Público e privado, que chegamos à análise dos vários tipos de fundação.
Assim, as fundações de Direito Privado.
São historicamente as primeiras a surgir, mas nem por isso
se pense que melhor se autonomizaram do poder devido à sua condição. Diz DSF
que Marcello Caetano é inequívoco, citando-o, “As fundações devem ser sempre
sujeitas à fiscalização e tutela do Estado”, mas, acrescenta o autor, não se
trata apenas de fiscalização e tutela. No tocante às fundações, e
diferentemente do que sucede com as associações, a intervenção do Estado consiste
num momento inicial de controlo discricionário (o acto de reconhecimento), mas
mantém-se ao longo da vida da fundação através de diversos actos de gestão e
fiscalização.
O acto de reconhecimento sucede ao acto de instituição, acto
inicial do procedimento fundacional. Trata-se da manifestação de vontade pela
qual o instituidor afecta um património à realização de um fim duradouro. O
Reconhecimento, por seu turno, deve averiguar a licitude do fim, a suficiência
do património, e a organização adequada. Refira-se, neste contexto, que a
constituição prevê o direito de associação (artigo 36º, nº1), mas não existe
qualquer direito semelhante para o direito a constituir uma fundação. O
entendimento histórico das fundações foi sempre de controlo e constrangimento
(e isto por razões fiscais, económicas e políticas). No tocante aos actos de
gestão e fiscalização, são incumbências do poder público a elaboração dos
estatutos, a modificação dos mesmos, a transformação da fundação ou mesmo a sua
extinção.
E com isto se conclui portanto que as fundações de Direito
Privado têm, face ao poder público, um grau de autonomia bastante relativo.
E as fundações de Direito Público?
É conhecida a tripartição da administração pública entre
Directa (uma pessoa colectiva, o Estado), Indirecta e Autónoma. A administração
indirecta é composta por número variado de pessoas colectivas públicas que
foram criadas “para maior facilidade de gestão”. Parte dessa administração
indirecta é constituída pelos “entes públicos institucionais”, conforme refere
Vital Moreira, dentro dos quais se encontram inseridas as Fundações Públicas.
Diz o professor Fausto de Quadros que as
Fundações de Direito público são criadas por lei ou acto administrativo, que as
fundações de direito privado são criadas por negócios jurídicos privados, e que
as fundações públicas são fundações de direito público ou privado consoante
prossigam fins exclusivamente ou também públicos, ou visem somente a prossecução
de interesses privados. A lei-quadro dos institutos públicos, no seu artigo 6º,
determina que as fundações públicas estão sujeitas ao Direito Público. E foi
para obstar a este tipo de restrições que a Administração pública começou a
optar por utilizar o direito privado, como já anteriormente foi referido.
A Fundação Público-Privada.
Todas as entidades privadas que prosseguem fins não
lucrativos socialmente relevantes podem dar um contributo essencial para a
prestação de funções públicas que o Estado pode não querer ou poder prestar.
Este terceiro sector configura um espaço novo, na medida em que se caracteriza
por elementos pertencentes ao Estado e à Sociedade, surgindo como um espaço
híbrido que supera a clássica díade.
Para cada momento histórico desta díade Estado-Sociedade, o
Direito criou soluções específicas. As fundações privadas têm sido e continuam
a ser uma resposta do direito às vontades individuais em destacas das suas
esferas jurídicas e submetê-lo à prossecução de interesses específicos,
socialmente relevantes. As fundações públicas surgem como formas privilegiadas
do Estado prosseguir interesses públicos específicos que convoquem a
movimentação e utilização de fundos a eles subordinados. As fundações públicas
floresceram com o Estado social. Porém, hodiernamente, a relação
Estado-Sociedade já não é correspondente ao modelo liberal ou social mas sim a
uma superação dos dois. As fundações público-privadas surgem, neste contexto,
como um instituto jurídico que reflecte uma nova manifestação histórica da
díade Estado-Sociedade.
Iniciativa de criação: O acto constitutivo não é relevante,
pelo que a fundação público-privada poderia ser constituída por qualquer acto
público ou privado apto para constituir uma fundação. O problema que se poderá
levantar é quanto à prossecução partilhada de fins socialmente relevantes
(prende-se com a essência da missão pública). Se no modelo de Estado liberal o
Estado não combate a fragmentação da Sociedade nem pretende suprir ou
substituir a sociedade, mas, inversamente, escolhe áreas que considera
essenciais e retira da esfera privada, já no modelo de Estado Social,
diferentemente, o estado assume o combate contra a fragmentação social,
tornando-se prestador. No modelo pós-social que vivemos o Estado reconheceu que
a sociedade desenvolve mecanismos próprios de interligação e combate à
fragmentação. O que se espera agora do Estado é que garanta que as iniciativas
da sociedade são justas e eficientes, ou que promova, ele próprio, parecerias
de prossecução integrada de interesse público, em que se assume como parceiro
garante da justiça e essência nessa mesma prossecução. É o que se chama o
Estado-Garantia.
Autonomização do património: No tocante à autonomização
privada do património, diz o autor que esse acto é livre. Já a situação de
autonomização de património público para a instituição de uma nova pessoa
colectiva - a fundação público-privada – levanta questões diversas. Apesar da
opção por uma pessoa colectiva diferente, é ainda e sempre de natureza pública
que falamos. Porém, tal recurso a pessoas colectivas diversas, e a parceria com
privados, inverte a questão do princípio da legitimidade. Defende o autor que
os cidadãos, enquanto contribuintes e garantes dos fundos públicos, devem
legitimar a transferência de fundos originariamente públicos que, pela sua
integração em nova pessoa colectiva público-privada, perderão tal natureza.
Fim de interesse social: O fim da fundação público-privada é
o seu elemento determinante. E a este respeito é importante salientar que fim
de interesse público e fim de interesse social não são sinónimos. No que diz
respeito ao Estado, é necessário que o fim de interesse social seja um fim de
interesse público, isto é, que seja um fim reconhecido normativamente pelo
Estado como sua tarefa. Depois, é necessário que este fim de interesse social
seja de tal modo qualificado que não permita a prossecução exclusiva pelo
Estado através do Governo, por outra pessoa colectiva pública, fundações
públicas no caso, ou através de uma fundação de direito privado de origem
pública.
Modelo organizativo: O modelo organizativo das fundações
público-privadas deverá seguir o modelo organizativo típico fundacional, no que
aliás, fundação pública e fundação privada pouco divergem.
Atribuição de poderes públicos à fundação público-privada: A
pessoa colectiva fundacional público-privada pode ser dotada de poderes
públicos de autoridade. Sendo que estes não decorrem da sua parcial natureza
pública, mas sim sim da prossecução de fins de interesse social.
Vinculações de Direito Público: O privado tem vantagens em associar-se
ao Estado, e isto tanto a nível fiscal como no aproveitamento do jus imperii do
Estado na prossecução do interesse público. Já quanto às constrições que se
impõem ao ente público que quisesse participar numa fundação público-privada
estas cingir-se-iam a duas questões essenciais: determinação e controlo dos
fundos públicos (que DSF considera uma falsa questão, visto que esta poderia
ser juridicamente protegida de modo a que o valor dispendido fosse
continuadamente mantido sob pena do ente público se retirar da parceria) e
autonomização e garantia dos controlos essenciais de gestão (que o autor
aprecia como não sendo uma novidade no sector empresarial do Estado, com
referência à existência de direitos accionistas especiais, cuja coordenação de
interesses é bem mais complexa que a da fundação público-privada). As
vinculações jurídicas impostas pela prossecução de interesse público no
exercício de poderes públicos são, na opinião do Dr. Domingos Soares Farinho,
extensíveis a esta questão das fundações público-privadas. Assim, os Direitos
Fundamentais. O que está em causa é a vinculação parcial de tais entidades à
denominada constituição administrativa (mas apenas na estrita medida dos
poderes público-privados exercidos, que se devem resumir a um núcleo essencial
em relação directa e necessária com a prossecução dos fins socialmente
relevantes a prosseguir). Acrescenta o Doutor que, na ausência de um direito
específico para as pessoas e a actividade público-privada, as fundações
público-privadas ficam sujeitas a um regime duplo, de direito administrativo e
de direito civil.
Domingos Soares Farinho acaba por concluir o seu estudo
assumindo que a exposição que elabora é acima de tudo prospectiva e dilemática.
Vendo nas fundações um elemento privilegiado, como pessoas colectivas, para a
prossecução do interesse público, o autor é partidário da ideia de que faz todo
o sentido que, ultrapassada a desconfiança do Estado em relação à Sociedade,
este se associe a tipos de pessoas colectivas que, prosseguindo fins
altruístas, prosseguem fins a que a Administração Pública tem estado cometida.
O autor conclui o seu estudo dizendo que é essencial às fundações
público-privadas a existência de mecanismos de controlo da estabilidade do
património público autonomizado e da despesa efectuada, mas também a existência
de mecanismos de autoridade pública que permitam agilizar e normalizar a
prossecução dos fins propostos. Deste modo, as fundações público-privadas
poderão desempenhar um papel fundamental na prossecução de interesses sociais
de relevo, sobretudo em áreas nas quais ainda hoje existem largas áreas de
insuficiência, injustiça e insegurança.
Este artigo do Dr. Domingos Soares Farinho parece-me
particularmente interessante por fugir do paradigma de Direito que desde o
primeiro dia enquanto estudante da Faculdade me foi apresentado. A ruptura com
o instituído binómio de Direito Público e Direito privado torna um pouco mais
simples a compreensão desta temática das fundações. Estas geram grande confusão
de classificação, isto, está claro, na perspectiva de um estudante do segundo
ano, e a abertura de uma terceira via classificatória acaba por tornar mais
simples inclusivamente a compreensão das outras duas, das clássicas atribuições
ao Direito Público e ao Direito Privado.
É certo que o que está em causa é somente uma ideia, uma
visão diferente que o Doutor apresenta desta temática das Fundações que, como
tão bem enfatiza ao longo do seu estudo, está em constante mutação. O que,
porém, não preclude que se reflicta sobre a mesma.
Com este post não pretendo deixar clarificada a dificuldade
de classificação das fundações (Se nem o Doutor Domingos Soares Farinho o
pretende...), mas sim transmitir aos colegas uma perspectiva que me parece
fundamental conhecer, porque dota o jurista de um olhar diferente sobre esta
temática.
Tiago Quaresma,
Nº22115