Fontes principais:
http://www.josesaramago.org/ (aqui encontram-se as hiperligações para a legislação referenciada)
Corre hoje [ontem] pela imprensa nacional a notícia de que a Fundação José Saramago (FJS) não terá
pago, desde a sua abertura ao público na Casa dos Bicos em junho deste ano até
ao presente momento, qualquer despesa relativa à manutenção desta. Importa
quanto a este aspecto reforçar a ideia de que o protocolo celebrado entre a
Fundação e a Câmara Municipal de Lisboa (CML), proprietária da Casa, para a
cedência temporária da mesma, salvaguardava concretamente que caberia à dita fundação
cobrir as despesas resultantes da sua actividade, sendo enumerados especificamente
os gastos de água, energia, segurança e vigilância.
Não é
contudo em torno deste facto que, isoladamente, se poderá encontrar um
relevante ponto de discussão, merecendo uma análise mais detalhada o conteúdo
da minuta da adenda ao protocolo de cedência aprovada no dia 24 do passado mês
de outubro em reunião de Câmara. Ora, através desta adenda verifica-se não só
que passam a ser da responsabilidade da CML as já referidas despesas de
manutenção, mas também que a autarquia se deverá obrigar a promover e executar
quaisquer obras que se entendam fundamentais para a segurança do imóvel e área
circundante, sendo de realçar que aquando da celebração do protocolo, que data
de 2008, já a Câmara tinha chamado a si a responsabilidade pelas despesas
decorrentes do funcionamento ordinário da Casa.
Para que se possa
fundamentar uma opinião em relação à justificação ou não desta transferência
formal de custos (em termos práticos já a CML os tinha assumido, nunca tendo
enviado as devidas facturas para a FJS) é essencial olhar para a natureza
jurídica da Fundação, bem como conhecer os fins que esta prossegue, uma vez que
a desconsideração destes elementos manchará qualquer consideração tecida em relação
ao tema. Assim sendo, e começando pela sua natureza jurídica à data da
instituição da sua personalidade jurídica, tomamos a Fundação José Saramago
enquanto pessoa colectiva privada, com o seu reconhecimento a ser dado pelo
Despacho n.º 4896/2008 de acordo com o exigido pelo nº.2 do artigo 158º do
Código Civil para as fundações deste tipo, ainda em vida do seu fundador. No
que respeita aos fins e objecto da FJS, podemos através duma simples consulta
aos seus Estatutos entender que estes se centram primeiramente na promoção ao
estudo e preservação da obra do Prémio Nobel português, sendo que nas medidas
propostas para a concretização desses fins encontramos algumas que estendem o
seu âmbito à defesa da língua e literatura portuguesa em geral. Esta observação
não se esgota, no entanto, sem a referência à declaração de utilidade pública
dada à Fundação pelo Despacho n.º 12039/2009, uma vez que tal declaração altera
a natureza desta para pessoa colectiva de utilidade pública, facto revestido de
enorme importância e que não se pode ignorar quando em causa está um apoio
económico por parte de uma pessoa colectiva pública a uma privada que cabe de seguida
analisar.
O
Decreto-Lei nº. 391/2007 de 13 de Dezembro veio actualizar o regime jurídico
regulador do reconhecimento de utilidade pública a pessoas colectivas privadas
instituído pelo Decreto-Lei nº. 460/77 e é ele a principal fonte que nos
permite debater as razões que vieram revestir a FJS enquanto pessoa de
utilidade pública. O diploma em questão estabelece, no nº2 do seu artigo 4º um
prazo (não verificado neste caso) geral de 3 anos de funcionamento efectivo
para a possibilidade de declaração de utilidade pública, constituindo os nºs. 1
e 3 do mesmo artigo as excepções a esse prazo. Por seu turno, não deixa o
Despacho que contém a declaração em análise de fazer referência ao
preenchimento dos pressupostos de um dos casos excepcionais que dispensam o
prazo, como o são o âmbito nacional da actividade e a relevância social da
mesma, constantes respectivamente das alíneas a) e b) do nº. 3 que,
aliás, nem necessitam de verificação cumulativa para convalidar essa dispensa.
Deste modo,
não causando a questão do prazo a existência de qualquer irregularidade, há que
recuar à essência e ao objecto da Fundação para perceber se é possível
fundamentar a sua declaração de utilidade e, em caso afirmativo, com que argumentos.
A meu ver, a simples leitura dos Estatutos da FJS poderá, numa impressão
inicial, levantar grandes dúvidas sobre o teor de interesse público da mesma.
Tal ocorre porque a própria redacção tem um marco profundamente individualista,
ao referenciar no seu objecto somente a promoção ao estudo da obra do escritor
fundador e a preservação de outros bens do próprio, sendo difícil vislumbrar
aqui algum tipo de altruísmo.
No entanto,
seria bastante redutor e intelectualmente desonesto considerar apenas o conteúdo
literal do objecto, ignorando quer as disposições feitas quanto aos meios para
a sua concretização, quer a própria actividade desenvolvida entretanto pela
Fundação ou ainda a importância e influência do autor à escala nacional. Quanto
ao primeiro ponto, já referi, e a confirmação é de fácil acesso, que a FJS
pretende na sua actividade contribuir para o progresso da literatura
portuguesa, tanto por via do incentivo ao aparecimento de novos autores como
pela promoção de eventos culturais de defesa da língua. No respeitante ao
segundo aspecto, a minha posição é de mero bom senso, já que, não tendo
conhecimento suficiente sobre a actividade desenvolvida pela Fundação até à
data do Despacho e das perspectivas futuras aí referenciadas, jamais poderia
argumentar de forma credível contra o que se encontra aí exposto, estando
obviamente receptivo, contudo, a prova em contrário. Passando ao último ponto,
é essencial, para o aceitar, adoptar uma postura isenta, desconsiderando
quaisquer opiniões pessoais em relação à obra de Saramago. Isto porque,
independentemente de se apreciar ou não a sua forma de escrever ou os temas por
si abordados com as respectivas conotações políticas, José Saramago é o único
Nobel da Literatura em Portugal e o seu nome goza portanto de um estatuto ímpar
a nível nacional, sendo ainda referenciado e respeitado além-fronteiras. Como
tal, é natural que no âmbito da promoção da literatura e cultura portuguesa se
entenda como sendo de utilidade pública o fim de promover e conservar tão marcante
obra, mais ainda se as directrizes dessa promoção apontam para o incentivo e apoio a novos valores e se desenvolvem nesse sentido. Seguindo esta lógica, há então
motivos entender que o âmbito da FJS se enquadra sem objecções na alínea a) do nº1. do artigo 2º. do DL 391/2007
e que, havendo ainda concordância com as restantes alíneas, se reúnem todas as
condições gerais exigidas para a declaração de utilidade pública.
Numa breve
mas importante alusão aos benefícios de que gozam as pessoas colectivas de
utilidade pública, temos nos artigos 9º, 10º e 11º do respectivo Decreto-Lei as
referências, por esta ordem, a isenções fiscais, regalias e expropriações
motivadas pelo seu fim. Ora, em nenhum destes benefícios encontramos semelhança
sequer parcial com aqueles que a FJS passa a usufruir com a adenda ao protocolo
com a Câmara de Lisboa, pelo que, ainda que se possam afastar alguns argumentos
contra o estatuto de utilidade pública da Fundação, será difícil tirar razão
àqueles que contestarem tais benefícios. Afinal de contas, a CML, ao pagar as
despesas correntes da FJS, está a utilizar o dinheiro que em parte provém dos
impostos pagos pelos seus munícipes para conceder um benefício não previsto
legalmente, agravando ainda mais as vozes que se ergueram na altura da previsão
da concessão da Casa dos Bicos logo após dispendiosas obras de manutenção.
Ao ceder a
Casa dos Bicos a uma fundação activa como a FJS, a CML garante que um edifício
de grande valia cultural, com riqueza histórica e arquitectónica se mantenha
útil e activo, mas a verdade é que a Fundação beneficia tanto ou mais do que a
Câmara com esta cedência. Mais ainda, a Fundação não explora a Casa dos Bicos
com o objectivo principal de promover o espaço na sua vertente cultural, mas
goza ao invés da possibilidade de desenvolver a sua actividade num espaço
remodelado e atraente para o qual não teve de despender qualquer valor
significativo.
Perante este
cenário, é posta em causa a actuação da CML quanto à administração de um
edifício cujo interesse público é fortemente alegável, já que a Fundação que
neste momento o ocupa, por muitos benefícios que possa trazer ao espaço no
decorrer da sua actividade, nunca terá no seu fim a promoção e conservação da
Casa dos Bicos, fazendo-o apenas na medida em que isso for benéfico para o seu
objecto estatutário.
Assim, seria
de expectar que a autarquia, com o intuito de dinamizar este elemento do seu
património e não o fazendo directamente, criasse ela própria uma fundação, em
concordância com os artigos 49º. E 50.º da Lei-Quadro das Fundações, definindo
um meio de financiamento resultante da própria actividade cultural a
desempenhar. Optando por outra via, haveria sempre a possibilidade de criação
de uma empresa municipal destinada a explorar a Casa dos Bicos ou, quem sabe,
todo um conjunto de edifícios históricos de igual valia, de forma a preservar a
riqueza histórica do município. Não se pode contudo ignorar que já existe em
Lisboa uma empresa municipal de cariz semelhante, a EGEAC, pelo que não seria descabido
dar preferência à anexação da gestão da Casa dos Bicos a esta empresa.
Exigia-se
então que, não sendo viável nenhuma das soluções sugeridas, a Câmara, se
abstivesse pelo menos das despesas que agora transfere para si, sob pena de, em
caso contrário, gerar o tal clima de contestação justificada que se pode
antever e que já se encontra marcado nas caixas de comentário às notícias
relacionadas. Na minha opinião, não faz sentido que a CML fique com os encargos
de uma parceria que se tem mostrado mais benéfica para a Fundação e que não
cobre as despesas feitas previamente com a remodelação do espaço.
Um último
elemento a ter em atenção prende-se com a noção de pessoa colectiva de utilidade
pública que encontrávamos já no Decreto-Lei nº. 460/77 e que não sofreu até
hoje qualquer alteração. Diz-nos o n.º1 do seu artigo 1.º que “São pessoas colectivas de utilidade pública
as associações ou fundações que prossigam fins de interesse geral, ou da
comunidade nacional ou de qualquer região ou circunscrição, cooperando com a
administração central ou a administração local, em termos de merecerem da parte
desta administração a declaração de utilidade pública.” Ora, daqui resulta que, tendo a FJS
recebido reconhecimento pela sua actividade a nível nacional e não pelo
interesse somente local, deveria vir da administração central o maior apoio e
cooperação, compreendendo-se
menos ainda os moldes em que a Câmara estabeleceu o protocolo e, num acto
subsequente, ainda o tornou mais favorável aos interesses da Fundação.
Em suma, o objectivo
desta reflexão não é pôr em causa a utilidade da Fundação José Saramago no
desenvolvimento da cultura nacional, nem tão pouco concluir que a Câmara
Municipal de Lisboa se deveria abster totalmente de prestar o seu apoio a esta
mesma fundação. O problema está no facto da actuação da CML ultrapassar os parâmetros
da razoabilidade e com isto desrespeitar os seus munícipes, já que numa colisão
de interesses local (uma distribuição de gastos com a finalidade de
proporcionar o bem-estar dos seus habitantes) e nacional (beneficiar com fundos
locais uma fundação de objecto mais extenso), a Câmara optou por este último,
não pautando a sua administração em função dos seus administrados prioritários.
Assim, fica
esta situação registada a título meramente exemplificativo, uma vez que não
estando nós à partida perante um caso de gravidade extrema, deveremos contudo
manter-nos atentos à actuação das fundações, nomeadamente às que têm apoio pelo
interesse público dos seus fins, para perceber até que ponto se podem justificar
os seus benefícios e, mesmo no caso de serem justificados, qual a extensão
admissível aos mesmos.
João Pedro Pires,
n.º22047
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