Administração Local
Autárquica – A Questão Da Existência de Autonomia Local
Historicamente, o afastamento do Estado central das zonas
periféricas e da população local levaram à organização de um poder local para a
prossecussão dos fins da comunidade organizada de pessoas em cada zona
territorial. Com a evolução que se tem testemunhado em todas as áreas esse
afastamento diminuiu consideravelmente, mas as necessidades específicas dessas
populações mantêm-se, pelo que hoje se coloca o problema da conjugação do poder
local com o poder estadual. Acontece cada vez mais agora que, em inúmeras
matérias, cada um deles pode apenas florescer à custa do outro, como à frente
explicarei, e procurarei analisar brevemente algumas questões que se colocam à
volta deste choque.
Adoptando a terminologia do Prof. Diogo Freitas do
Amaral, a administração local autárquica pode ser considerada em dois sentidos:
em sentido orgánico ou subjectivo, é o conjunto das autarquias locais; em
sentido material ou objectivo, é a actividade administrativa desenvolvida por
essas autarquias locais.
De acordo com a definição proposta pelo Sr. Prof., as
autarquias locais são pessoas colectivas públicas de população e território,
correspondentes aos agregados de residentes em diversas circunscrições do
território nacional, e que asseguram a prossecução dos interesses comuns
resultantes da vizinhança mediante órgãos próprios, representativos dos
respectivos habitantes, e estão previstas na nossa Constituição (art. 235º) .
O art. 236º da nossa Constituição prevê 3 espécies de
autarquias locais: os municípios, as freguesias e as regiões administrativas.
Estas considerações permitem, portanto, concluir que as
autarquias locais são pessoas colectivas distintas do Estado e que, desenvolvendo
uma actividade administrativa própria, pertencem à administração autónoma.
Pode retirar-se daqui um conjunto de elementos que
compõem as autarquias locais: o território, o agregado populacional, os
interesses comuns, e os órgãos representativos.
O território é uma parte do território nacional
denominada circunscrição administrativa, e desempenha 3 funções: em primeiro
lugar, a de identificar a autarquia local, uma vez que esta se organiza com
base na circunscrição administrativa; em segundo lugar, a de definir o agregado
populacional; em terceiro lugar, a de delimitar as atribuições e competências
da autarquia em função do local.
O agregado populacional é o elemento que compõe o
substracto humano da autarquia e tem a função de definir os interesses comuns a
prosseguir.
Os interesses comuns são o fundamento da existência da
autarquia local, pois que a sua prossecução representa a finalidade da
autarquia.
O último elemento da autarquia local é a existência de
orgãos representativos. Os órgãos representativos compõem o corpo da autarquia:
sem orgãos, esta não pode desenvolver a sua actividade administrativa.
É importante dar atenção a como cada um dos elementos se
relaciona entre si, cada um dependendo do anterior e formando, no seu conjunto,
a autarquia local. Posto isto, é possível desenhar um quadro nos seguintes
termos:
Para que as autarquias locais prossigam os seus fins
necessitam de ter autonomia face ao Estado. O conceito de autonomia varia
conforme as ideias políticas e mesmo hoje há divergências sobre o que deve ser.
A Carta Europeia de Autonomia Local, que vincula Portugal, dispõe no art. 3º
que “entende-se por autonomia local o
direito e a capacidade efectiva de as autarquias locais regulamentarem e
gerirem, nos termos da lei, sob sua responsabilidade e no interesse das
respectivas populações, uma parte importante dos assuntos públicos”.
O Prof. Diogo Freitas do Amaral é da opinião que a
autonomia local pressupõe, para além desta definição, (a)o direito das
autarquias participarem na definição das políticas públicas que afectem
interesses próprios das respectivas populações,
(b)o direito de partilharem com o Estado as decisões sobre matéria de
interesse comum e ainda (c)o direito de regulamentarem a aplicação das normas,
sempre que possível, por forma a adaptá-las convenientemente às realidades
locais.
A autonomia local das autarquias é um elemento essencial
para que haja poder local. A existência de poder local exige que haja atribuições,
competências e meios suficientes (financeiros, humanos e materiais) para que as
autarquias consigam prosseguir os seus interesses sem controlo excessivo do
Estado.
Analisando o seu regime, a Constituição da República
Portuguesa (CRP) de 1976 estabelece alguns princípios gerais no Capítulo I do
Poder Local. Nesses artigos dispõem-se alguns pontos importantes, entre os
quais os seguintes:
- Que a divisão administrativa
do território é feita por lei (art. 236º);
- Que a organização bem como a regulação das
competências e atribuições das
autarquias locais é feita por
lei (art. 237º) – Lei nº 159/99 e Lei nº 169/99;
- Que as autarquias locais têm património e
finanças próprios, e que o regime das
finanças locais será
estabelecido por lei (art. 238º) – Lei nº 2/2007;
- Que as autarquias locais têm
um orgão deliberativo eleito por sufrágio directo, universal e secreto do
agregado populacional, bem como um órgão executivo (art. 239º);
- Que as autarquias locais
dispõem de poer regulamentar dentro dos limites da CRP, da lei e dos
regulamentos emanados de um órgão superior (art. 241º);
- Que o
Estado dispõe de poder de tutela de legalidade sobre as autarquias (art. 242º)
– Lei nº 27/96;
E que as autarquias locais
possuem quadros de pessoal próprio nos termos da lei (art. 243º)
Sobre esta matéria existe o princípio da reserva de lei
da Assembleia da República, em alguns casos absoluta - art. 164º als. b), l),
m), n) e r) – noutros, relativa – art. 165º als. q), r), e aa).
Estes são as principais fontes legais do regime das
autarquias locais.
Mas cabe analisar quanta autonomia têm as autarquias
locais face ao Estado, uma vez que a concretização de quase todas as
disposições da CRP foi remetida para lei:
Em termos financeiros (Lei nº 2/2007), salientam-se
alguns pontos:
- O art. 3º confere a gestão
do património e das finanças próprias das autarquias nos termos do seu nº 2;
- Os arts. 10º a 12º
estabelecem quais as receitas, os poderes tributários e as isenções e
benefícios fiscais dos Municípios;
- Os arts. 17º e 18º
estabelecem quais as receitas e quais as taxas que podem ser estabelecidas
pelas Freguesias.
- O Título III desta lei
regula a repartição dos recursos públicos entre o Estado e as autarquias
locais.
- O artigo 37º estabelece um
limite ao endividamento.
Quanto às suas atribuições e competências (Lei nº 159/99),
podem inferir-se dos critérios de transferência das competências, estabelecidos
nos princípios gerais, alguns limites à autonomia das autarquias, se bem que
não sejam decisivos:
- O arts. 2º, 3º e 4º estabelecem critérios de
coesão social, proximidade dos cidadãos,
eficiência e eficácia de gestão tanto no âmbito das transferências
realizadas como no âmbito do nível da Administração a que as transferências
deverão ser exercidas, evitando a sobreposição de actuações das autarquias
locais e da administração central bem como a unidade na prossecução das
políticas públicas e os planos enquadradores da actividade da administração
central e da administração local;
- O Capítulo II (arts. 13º a
15º) delimita largamente os domínios das atribuições dos municípios e das
freguesias, prevendo ainda a possibilidade de delegação de competências
daquelas, nestas.
- O Capítulo III (arts. 16º e
seguintes) dedica-se às competências dos munícipios, transferindo-lhes poderes
de gestão, planeamento e investimento nas mais variadas áreas.
Conclusões
Face ao disposto, é possível pintar-se já uma imagem das
relações do Estado com as autarquias locais, e da posição destas face àquele.
Existe de facto uma descentralização jurídica, no sentido em que a função
administrativa está confiada a outras pessoas públicas colectivas para além do
Estado, mas a questão deve colocar-se não do ponto de vista jurídico, mas do
ponto de vista político-administrativo, uma vez que o grau de descentralização
político-administrativa é em grande medida a reflexão do grau de autonomia que o
poder local tem face ao Estado.
Como afirmei na introdução deste artigo, a existência do
poder local tem uma finalidade. Tentando qualificar o grau de autonomia das
autarquias locais, devemos questionar-nos sobre se são conferidos pela lei às
autarquias os meios suficientes para a prossecução dos seus interesses por si próprias,
ou seja, fazer aquilo para que foram criadas.
Creio que, vistos os pontos principais do regime as
autarquias locais, pode afirmar-se que a lei impõe deveres ao Estado face às
autarquias que lhes permitem ter o grau de liberdade em relação a este bem como os
meios técnicos, humanos e financeiros suficientes para prosseguirem com
eficácia os interesses próprios de cada aglomerado populacional.
É de notar que fortalecer o poder local por um
lado equivale a enfraquecer o poder central pelo outro; desta forma, e tendo isso em conta, penso que há um grau de
autonomia local suficiente e equilibrado, mas é necessário notar que ainda
assim, esse grau está consagrado em lei ordinária o que, dado o nosso
processo legislativo, mostra como o grau de autonomia de que as autarquias
locais beneficiam pode ser facilmente
alterado e reduzido sem violar princípios constitucionais: Se a autonomia é uma questão de grau, e a CRP apenas exige que ela exista, em termos vagos e sem especificar até que ponto, como creio que o não faz, há que questionar até que ponto a CRP protege uma verdadeira autonomia local.
Isso faz da autonomia local uma realidade constantemente
mutável, e a sua abstracção faz com que se torne mais díficil uma avaliação
objectiva do problema que possa gerar algum consenso.
Admito já, no entanto, a possível existência de algumas
falhas na minha opinião devido à não inclusão da análise do poder de tutela
exercido pelo Estado sobre as nesta equação.
Tomás Tudela
Tomás Tudela
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