segunda-feira, 19 de novembro de 2012



Administração Local Autárquica – A Questão Da Existência de Autonomia Local

Historicamente, o afastamento do Estado central das zonas periféricas e da população local levaram à organização de um poder local para a prossecussão dos fins da comunidade organizada de pessoas em cada zona territorial. Com a evolução que se tem testemunhado em todas as áreas esse afastamento diminuiu consideravelmente, mas as necessidades específicas dessas populações mantêm-se, pelo que hoje se coloca o problema da conjugação do poder local com o poder estadual. Acontece cada vez mais agora que, em inúmeras matérias, cada um deles pode apenas florescer à custa do outro, como à frente explicarei, e procurarei analisar brevemente algumas questões que se colocam à volta deste choque.


Adoptando a terminologia do Prof. Diogo Freitas do Amaral, a administração local autárquica pode ser considerada em dois sentidos: em sentido orgánico ou subjectivo, é o conjunto das autarquias locais; em sentido material ou objectivo, é a actividade administrativa desenvolvida por essas autarquias locais.

De acordo com a definição proposta pelo Sr. Prof., as autarquias locais são pessoas colectivas públicas de população e território, correspondentes aos agregados de residentes em diversas circunscrições do território nacional, e que asseguram a prossecução dos interesses comuns resultantes da vizinhança mediante órgãos próprios, representativos dos respectivos habitantes, e estão previstas na nossa Constituição (art. 235º) .
O art. 236º da nossa Constituição prevê 3 espécies de autarquias locais: os municípios, as freguesias e as regiões administrativas.

Estas considerações permitem, portanto, concluir que as autarquias locais são pessoas colectivas distintas do Estado e que, desenvolvendo uma actividade administrativa própria, pertencem à administração autónoma.

Pode retirar-se daqui um conjunto de elementos que compõem as autarquias locais: o território, o agregado populacional, os interesses comuns, e os órgãos representativos.

O território é uma parte do território nacional denominada circunscrição administrativa, e desempenha 3 funções: em primeiro lugar, a de identificar a autarquia local, uma vez que esta se organiza com base na circunscrição administrativa; em segundo lugar, a de definir o agregado populacional; em terceiro lugar, a de delimitar as atribuições e competências da autarquia em função do local.

O agregado populacional é o elemento que compõe o substracto humano da autarquia e tem a função de definir os interesses comuns a prosseguir.

Os interesses comuns são o fundamento da existência da autarquia local, pois que a sua prossecução representa a finalidade da autarquia.

O último elemento da autarquia local é a existência de orgãos representativos. Os órgãos representativos compõem o corpo da autarquia: sem orgãos, esta não pode desenvolver a sua actividade administrativa.

É importante dar atenção a como cada um dos elementos se relaciona entre si, cada um dependendo do anterior e formando, no seu conjunto, a autarquia local. Posto isto, é possível desenhar um quadro nos seguintes termos:


Para que as autarquias locais prossigam os seus fins necessitam de ter autonomia face ao Estado. O conceito de autonomia varia conforme as ideias políticas e mesmo hoje há divergências sobre o que deve ser. A Carta Europeia de Autonomia Local, que vincula Portugal, dispõe no art. 3º que “entende-se por autonomia local o direito e a capacidade efectiva de as autarquias locais regulamentarem e gerirem, nos termos da lei, sob sua responsabilidade e no interesse das respectivas populações, uma parte importante dos assuntos públicos”.
O Prof. Diogo Freitas do Amaral é da opinião que a autonomia local pressupõe, para além desta definição, (a)o direito das autarquias participarem na definição das políticas públicas que afectem interesses próprios das respectivas populações,  (b)o direito de partilharem com o Estado as decisões sobre matéria de interesse comum e ainda (c)o direito de regulamentarem a aplicação das normas, sempre que possível, por forma a adaptá-las convenientemente às realidades locais.

A autonomia local das autarquias é um elemento essencial para que haja poder local. A existência de poder local exige que haja atribuições, competências e meios suficientes (financeiros, humanos e materiais) para que as autarquias consigam prosseguir os seus interesses sem controlo excessivo do Estado.


Analisando o seu regime, a Constituição da República Portuguesa (CRP) de 1976 estabelece alguns princípios gerais no Capítulo I do Poder Local. Nesses artigos dispõem-se alguns pontos importantes, entre os quais os seguintes:

- Que a divisão administrativa do território é feita por lei (art. 236º);

 - Que a organização bem como a regulação das competências e atribuições das
autarquias locais é feita por lei (art. 237º) – Lei nº 159/99 e Lei nº 169/99;

 - Que as autarquias locais têm património e finanças próprios, e que o regime das
finanças locais será estabelecido por lei (art. 238º) – Lei nº 2/2007;

- Que as autarquias locais têm um orgão deliberativo eleito por sufrágio directo, universal e secreto do agregado populacional, bem como um órgão executivo (art. 239º);

- Que as autarquias locais dispõem de poer regulamentar dentro dos limites da CRP, da lei e dos regulamentos emanados de um órgão superior (art. 241º);

- Que o Estado dispõe de poder de tutela de legalidade sobre as autarquias (art. 242º) – Lei nº 27/96;

E que as autarquias locais possuem quadros de pessoal próprio nos termos da lei (art. 243º)

Sobre esta matéria existe o princípio da reserva de lei da Assembleia da República, em alguns casos absoluta - art. 164º als. b), l), m), n) e r) – noutros, relativa – art. 165º als. q), r), e aa).
Estes são as principais fontes legais do regime das autarquias locais.
Mas cabe analisar quanta autonomia têm as autarquias locais face ao Estado, uma vez que a concretização de quase todas as disposições da CRP foi remetida para lei:

Em termos financeiros (Lei nº 2/2007), salientam-se alguns pontos:

- O art. 3º confere a gestão do património e das finanças próprias das autarquias nos termos do seu nº 2;

- Os arts. 10º a 12º estabelecem quais as receitas, os poderes tributários e as isenções e benefícios fiscais dos Municípios;

- Os arts. 17º e 18º estabelecem quais as receitas e quais as taxas que podem ser estabelecidas pelas Freguesias.

- O Título III desta lei regula a repartição dos recursos públicos entre o Estado e as autarquias locais.

- O artigo 37º estabelece um limite ao endividamento.

Quanto às suas atribuições e competências (Lei nº 159/99), podem inferir-se dos critérios de transferência das competências, estabelecidos nos princípios gerais, alguns limites à autonomia das autarquias, se bem que não sejam decisivos:

 - O arts. 2º, 3º e 4º estabelecem critérios de coesão social, proximidade dos cidadãos,  eficiência e eficácia de gestão tanto no âmbito das transferências realizadas como no âmbito do nível da Administração a que as transferências deverão ser exercidas, evitando a sobreposição de actuações das autarquias locais e da administração central bem como a unidade na prossecução das políticas públicas e os planos enquadradores da actividade da administração central e da administração local;

- O Capítulo II (arts. 13º a 15º) delimita largamente os domínios das atribuições dos municípios e das freguesias, prevendo ainda a possibilidade de delegação de competências daquelas, nestas.

- O Capítulo III (arts. 16º e seguintes) dedica-se às competências dos munícipios, transferindo-lhes poderes de gestão, planeamento e investimento nas mais variadas áreas.

Conclusões

Face ao disposto, é possível pintar-se já uma imagem das relações do Estado com as autarquias locais, e da posição destas face àquele. Existe de facto uma descentralização jurídica, no sentido em que a função administrativa está confiada a outras pessoas públicas colectivas para além do Estado, mas a questão deve colocar-se não do ponto de vista jurídico, mas do ponto de vista político-administrativo, uma vez que o grau de descentralização político-administrativa é em grande medida a reflexão do grau de autonomia que o poder local tem face ao Estado.

Como afirmei na introdução deste artigo, a existência do poder local tem uma finalidade. Tentando qualificar o grau de autonomia das autarquias locais, devemos questionar-nos sobre se são conferidos pela lei às autarquias os meios suficientes para a prossecução dos seus interesses por si próprias, ou seja, fazer aquilo para que foram criadas.

Creio que, vistos os pontos principais do regime as autarquias locais, pode afirmar-se que a lei impõe deveres ao Estado face às autarquias que lhes permitem ter o grau de liberdade em relação a este bem como os meios técnicos, humanos e financeiros suficientes para prosseguirem com eficácia os interesses próprios de cada aglomerado populacional.

É de notar que fortalecer o poder local por um lado equivale a enfraquecer o poder central pelo outro; desta forma, e tendo isso em conta, penso que há um grau de autonomia local suficiente e equilibrado, mas é necessário notar que ainda assim, esse grau está consagrado em lei ordinária o que, dado o nosso processo legislativo, mostra como o grau de autonomia de que as autarquias locais  beneficiam pode ser facilmente alterado e reduzido sem violar princípios constitucionais: Se a autonomia é uma questão de grau, e a CRP apenas exige que ela exista, em termos vagos e sem especificar até que ponto, como creio que o não faz, há que questionar até que ponto a CRP protege uma verdadeira autonomia local.

Isso faz da autonomia local uma realidade constantemente mutável, e a sua abstracção faz com que se torne mais díficil uma avaliação objectiva do problema que possa gerar algum consenso.

Admito já, no entanto, a possível existência de algumas falhas na minha opinião devido à não inclusão da análise do poder de tutela exercido pelo Estado sobre as nesta equação.

Tomás Tudela

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