domingo, 4 de novembro de 2012

Viagem aos meandros da Administração Indirecta à luz de uma Acórdão do STA

por Nuno Miguel Igreja Matos, nº22102


       Como resultado da crescente complexificação das funções do Estado, uma consequência do Estado Providência que moldou a Administração para um modelo prestativo e, posteriormente, de criação infra-estrutural, tornou-se conveniente adoptar novas fórmulas de organização e funcionamento da Administração Pública. É este o pano de fundo do surgimento e afirmação da Administração do tipo indirecta – o Estado descentraliza funções em organismos autónomos, mantendo, contudo, uma relação de intimidade com estes no respeitante à realização de fins próprios do Estado. Há, portanto, uma devolução de poderes, que se revela, todavia, condicionada, uma vez que o Estado pode a qualquer momento chamá-los a si, através de certas formas legalmente exigidas. A natureza pública da actividade exercida de forma indirecta legitima ainda a existência de contrapartidas a favor do Estado, relacionadas com o poder de superintendência e tutela. Em suma, a administração indirecta prossegue o interesse do Estado, mas é exercida em nome próprio, em virtude da sua autonomia e personalidade.

Sumariamente delineados os principais traços característicos da administração do tipo indirecto, cabe revelar que o objectivo do presente texto não se prende com exposições teóricas sobre esta variante da Administração Pública, até porque qualquer tentativa de assim proceder sairia sempre gorada de utilidade em virtude da multiplicidade de obras que exploram o tema com uma acutilância e manuseio conceptual longe do alcance do mais bem-intencionado debutante de Direito Administrativo. Por outro lado, procurar-se-á, partindo da análise de um Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, penetrar no difícil e sinuoso funcionamento prático deste sistema de Administração, com a ambição última de fazer justiça, não apenas à promiscuidade inevitável entre a esfera política e a esfera administrativa, mas sobretudo à eficácia mais ou menos imediata dos princípios e mecanismos que regem e salvaguardam o Direito Administrativo e a Administração.

Neste sentido, partindo de uma análise factual concentrada nas questões mais pertinentes dos eventos que originaram o processo judicial, proceder-se-á a uma análise dos principais argumentos alegados pelas partes em confronto e, por fim, a uma descrição e análise da decisão da última instância judicial em matéria administrativa, estabelecendo um útil paralelo entre os contornos do Acórdão e a matéria explorada até ao momento no curso de Direito Administrativo.
(O Acórdão poderá ser consultado aqui)

1 - Em Janeiro de 2001, o Conselho Directivo do Instituto da Solidariedade e Segurança Social (ISSS) nomeou 18 directores para diversos Centros Distritais do mesmo instituto, tendo estas nomeações sido confirmadas no mês seguinte por despacho do Ministro do Trabalho e da Solidariedade. Os nomeados iniciaram de imediato funções, acordando o Conselho Directivo do ISSS que o exercício das suas funções/cargos, por se desenvolverem no quadro específico do ISSS, só poderia ser alvo de cessação por deliberação do mesmo Conselho e com direito a indemnização, conforme estipulado no Regulamento do Pessoal Dirigente e da Chefia do ISSS.
     Em Abril de 2002 toma posse o XV Governo Constitucional. Em Julho, a nova Secretária de Estado da Segurança Social, aprova por despacho um aditamento de uma alínea f) ao Regulamento do Pessoal Dirigente e da Chefia do ISSS segundo o qual seria permitida “a cessação das comissões de serviço do pessoal dirigente e de chefia deste instituto por iniciativa do membro do Governo competente” (e não do seu órgão máximo, isto é, o Conselho Directivo) e com preclusão do direito à correspondente indemnização.
    Em Agosto de 2002, foram os mesmos notificados, em sede de audiência prévia, dos projectos de um despacho com vista a fazer cessar as suas funções nos Centros Distritais por razão “de necessidade de  imprimir nova orientação à gestão dos serviços e de modificar as políticas a prosseguir”. O previsto despacho, da Secretária do Estado da Segurança Social, viria a ser publicado no mês seguinte.

2 – Na sequência do referido, os 18 Directores dos Centros Distritais requereram ao Tribunal Administrativo a anulação do despacho de Setembro de 2002 (que deu por finda a Comissão de Serviço como Directores dos Centros Distritais), alegando:
a)  O Instituto da Solidariedade e Segurança Social (ISSS) é uma pessoa colectiva de direito público dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, com a natureza de Instituto Público;
b) O cumprimento zeloso das funções para que haviam sido nomeados pelo Conselho Directivo do ISSS, o que põe em causa o fundamento da decisão de cessação dos seus serviços;
c) O aditamento ao Regulamento do Pessoal Dirigente e da Chefia do ISSS constitui uma afronta à autonomia regulamentar do ISSS, estando por isso o despacho de cessação de funções ferido de incompetência absoluta, o que acarreta nulidade;
d) Ainda relativamente ao aditamento de Julho de 2002, ao criar uma alínea f) que confere poder de cessação por iniciativa do Governo, verifica-se que este põe em causa o distanciamento das Instituições Públicas face à política partidária, permitindo ao Governo saciar “as suas clientelas político-partidárias” com funções no seio do ISSS. Assim, os despachos da Secretária do Estado da Segurança Social veiculam uma clara intenção de assimilar o ISSS a um serviço da Administração Directa, estando, por isso, feridos de incompetência absoluta por violação do 199º CRP e 133º, nº2, alínea b), 2ª parte do CPA, bem como do vício de desvio poder, uma vez que a cessação de funções se limitou a abrir vaga para personalidades “político-partidárias íntimas com o XV Governo Constitucional”;
e) Por fim, mesmo que se entenda que os actos acima citados não padecem do vício de nulidade, o despacho de cessação de funções é anulável, uma vez que carece de fundamentação, limitando-se a citar o prescrito na Lei 49/99 relativa aos funcionários da Administração Pública. A falta de fundamento viola o 125º/1 e 2 e 135º do CPA.

    3 - A Secretária do Estado da Segurança Social contra-argumentou: 
a) O que está em causa é uma ordem de cessação de funções dos recorrentes de cargos públicos, para as quais haviam sido nomeados ao abrigo da confiança do Governo anterior. Logo, dado que o Instituto Público em causa faz parte da Administração indirecta do Estado e está sujeito aos poderes de superintendência do Governo, é pois perfeitamente legítimo que o Governo tenha a faculdade de fazer cessar as funções daqueles que pelo Governo também foram livremente nomeados, e que o faça segundo o regime da Lei 49/99. Assim, improcede a alegação de vício por incompetência absoluta;

    b) A alteração ao Regulamento, com o aditamento de uma nova alínea que prevê a possibilidade de, por iniciativa de um membro de Governo, fazer cessar funções aos Chefes Distritais, vem evitar um regime de favorecimento duvidoso aos citados funcionários. A indemnização em causa mais não constitui que um privilégio injustificado de dúbia legalidade relativamente à generalidade dos dirigentes da função Pública, cabendo a revisão do regime nas atribuições do Governo;
    c) O alegado vício de forma por falta de fundamento peca por improcedente, uma vez que a justificação apresentada (“necessidade de imprimir uma nova orientação à gestão dos serviços”) surge logicamente na sequência do Programa do XV Governo Constitucional. A prossecução dos fins do dito Programa depende da escolha de Chefes Distritais identificados com a nova missão estipulada. Neste sentido, os recorrentes, ao estarem identificados com a prossecução de um fim pertencente ao anterior Governo, não se adequam à direcção dos Centros Distritais;
     d) Por fim, tendo-se verificado que os actos praticados tinham por legítimo fim a execução da nova política de segurança social, não tem procedência a acusação de desvio de poder.

          4 – Atentando nas alegações de falta de competência do Governo, o Supremo Tribunal Administrativo, no seu Acórdão, invoca o princípio “tempus regit actum” para justificar a aplicação do disposto na entretanto aditada alínea f) do supracitado Regimento, que vem, precisamente, atribuir competência ao Governo para a prático do acto contenciosamente impugnado, dando ainda razão à Secretária de Estado ao enquadrar o aditamento numa correcção de uma “deficiência” ou omissão da regulamentação em vigor relativamente à aplicação da Lei 49/99 dos funcionários da função Pública. Conclui assim, por infundadas as alegações de incompetência e desvio de poder.
Relativamente à alegação de vício por falta de fundamentação, o Acórdão, verificando da efectiva transcrição do texto legal do art. 20º/2 da Lei 49/99“a necessidade de imprimir nova orientação à gestão dos serviços e de modificar as políticas a prosseguir”, entende que há de facto uma carência de fundamentação, exigida pelo art.º 268/3 CRP e pelo art.º 125/1 CPA. Segundo o princípio da fundamentação, e citando, “o acto só está fundamentado quando, pela motivação aduzida, se mostra apto a revelar a um destinatário normal as razões de facto e de direito que determinaram a decisão.”. Neste sentido, “não está devidamente fundamentado (…) o acto administrativo que assenta em considerações neutras e meramente conclusivas, baseando-se em fórmulas genéricas extraídas de formulários preexistentes." como se verificou no caso em questão.
Assim, acordaram os seguintes termos:
“a) Conceder provimento ao recurso jurisdicional com a consequente revogação do acórdão recorrido;
b) Conceder provimento ao recurso contencioso e em conformidade anular o acto contenciosamente impugnado” por vício de falta de fundamentação.

5 – O Acórdão acima sumariado ilustra vivamente a complexidade da relação entre o Estado e os seus organismos de Administração indirecta, na qual se levantam continuamente questões cuja resposta deve ser encontrada num emaranhado de diplomas legais e princípios nem sempre de fácil ou intuitiva conciliação.
    No presente caso, relevava atender a duas importantes sensibilidades: por um lado a circunstância de mudança de Governo e necessidade evidente de remodelar a Administração conforme os seus ideais e fins, devidamente identificados no respectivo Programa; por outro, atender aos interesses e direitos dos funcionários públicos em funções, evitando a exploração de um regime que perpetuasse a sua dispensa com leviandade, bem como aos limites da autonomia dos Institutos Públicos.
    A mudança de Governo abarca quase sempre uma mudança nos vectores axiológicos de orientação da Administração Pública, constituindo um exemplo paradigmático da constante subordinação da Administração à variedade ideológica dos diferentes partidos que vão assumindo as rédeas governamentais. A eficiência do Governo depende da confiança que exista entre os seus Ministros e os funcionários por eles tutelados nos diversos organismos da Administração Pública, constituindo a nomeação e dispensa destes um corolário dos poderes de superintendência e tutela exercidos pelo Estado sobre os entes da Administração indirecta.
   O litígio acima sumariado levanta a pertinente questão de saber até que ponto é legítimo a um Secretário de Estado fazer cessar as funções de Directores Distritais de um Instituto Público que sempre pautaram a sua conduta com reconhecido zelo e mérito, para posteriormente os substituir por indivíduos íntimos com a correspondente esfera partidária. Em suma, qual a fronteira entre a cessação de serviços em nome da prossecução uma nova política governamental e a dispensa de funcionários de reconhecida eficiência para satisfazer um crónico nepotismo que parece enraizado na prática partidária.
  A realidade demonstra que o desvio de poder, nestas situações, é sempre de difícil demonstração. Contudo, se esta tarefa se revela algo herculiana, há outros mecanismos de protecção dos funcionários públicos legalmente previstos que o Acórdão do STA soube pertinentemente invocar. O princípio da fundamentação dos actos administrativos revelou-se, no caso concreto, de suma importância na salvaguarda não somente do Instituto Público, mas sobretudo no combate à leviandade, e até insensibilidade, com que a Secretária de Estado havia abordado a reforma dos Centros Distritais do ISSS.
  Em suma, a Administração do tipo indirecto, apesar de teoricamente bem esboçada, revela-se de funcionamento algo frágil. É uma relação que, pela sua natureza, se perde por vezes em meandros de burocracia, levantando questões difíceis cuja solução deve sempre ser encontrada a partir de um ponto de vista de interesse público e, sobretudo, de protecção da integridade e transparência do funcionamento do Estado.
                

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