por Nuno Miguel Igreja Matos, nº22102
Como resultado da crescente
complexificação das funções do Estado, uma consequência do Estado Providência
que moldou a Administração para um modelo prestativo e, posteriormente, de
criação infra-estrutural, tornou-se conveniente adoptar novas fórmulas de
organização e funcionamento da Administração Pública. É este o pano de fundo do
surgimento e afirmação da Administração do tipo indirecta – o Estado
descentraliza funções em organismos autónomos, mantendo, contudo, uma relação
de intimidade com estes no respeitante à realização de fins próprios do Estado.
Há, portanto, uma devolução de poderes, que se revela, todavia, condicionada,
uma vez que o Estado pode a qualquer momento chamá-los a si, através de certas
formas legalmente exigidas. A natureza pública da actividade exercida de forma indirecta legitima ainda a
existência de contrapartidas a favor do Estado, relacionadas com o poder de
superintendência e tutela. Em suma, a administração indirecta prossegue o
interesse do Estado, mas é exercida em nome próprio, em virtude da sua
autonomia e personalidade.
Sumariamente delineados os principais traços característicos da
administração do tipo indirecto, cabe revelar que o objectivo do presente texto
não se prende com exposições teóricas sobre esta variante da Administração
Pública, até porque qualquer tentativa de assim proceder sairia sempre gorada de
utilidade em virtude da multiplicidade de obras que exploram o tema com uma
acutilância e manuseio conceptual longe do alcance do mais bem-intencionado
debutante de Direito Administrativo. Por outro lado, procurar-se-á, partindo da
análise de um Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, penetrar no difícil e
sinuoso funcionamento prático deste sistema de Administração, com a ambição
última de fazer justiça, não apenas à promiscuidade inevitável entre a esfera
política e a esfera administrativa, mas sobretudo à eficácia mais ou menos
imediata dos princípios e mecanismos que regem e salvaguardam o Direito Administrativo
e a Administração.
Neste sentido, partindo de uma análise factual concentrada nas questões
mais pertinentes dos eventos que originaram o processo judicial, proceder-se-á
a uma análise dos principais argumentos alegados pelas partes em confronto e,
por fim, a uma descrição e análise da decisão da última instância judicial em
matéria administrativa, estabelecendo um útil paralelo entre os contornos do
Acórdão e a matéria explorada até ao momento no curso de Direito Administrativo.
(O Acórdão poderá ser consultado aqui)
1 - Em Janeiro de 2001, o
Conselho Directivo do Instituto da Solidariedade e Segurança Social (ISSS)
nomeou 18 directores para diversos Centros Distritais do mesmo instituto, tendo
estas nomeações sido confirmadas no mês seguinte por despacho do Ministro do
Trabalho e da Solidariedade. Os nomeados iniciaram de imediato funções,
acordando o Conselho Directivo do ISSS que o exercício das suas funções/cargos,
por se desenvolverem no quadro específico do ISSS, só poderia ser alvo de
cessação por deliberação do mesmo Conselho e com direito a indemnização,
conforme estipulado no Regulamento do Pessoal Dirigente e da Chefia do ISSS.
Em Abril de 2002 toma posse o XV
Governo Constitucional. Em Julho, a nova Secretária de Estado da Segurança
Social, aprova por despacho um aditamento de uma alínea f) ao Regulamento do
Pessoal Dirigente e da Chefia do ISSS segundo o qual seria permitida “a cessação das comissões de serviço do
pessoal dirigente e de chefia deste instituto por iniciativa do membro do
Governo competente” (e não do seu órgão máximo, isto é, o Conselho
Directivo) e com preclusão do direito à correspondente indemnização.
2 – Na sequência
do referido, os 18 Directores dos Centros Distritais requereram ao Tribunal
Administrativo a anulação do despacho de Setembro de 2002 (que deu por finda a
Comissão de Serviço como Directores dos Centros Distritais), alegando:
a) O Instituto
da Solidariedade e Segurança Social (ISSS) é uma pessoa colectiva de direito
público dotada de autonomia administrativa, financeira e patrimonial, com a
natureza de Instituto Público;
b) O cumprimento
zeloso das funções para que haviam sido nomeados pelo Conselho Directivo do
ISSS, o que põe em causa o fundamento da decisão de cessação dos seus serviços;
c) O aditamento
ao Regulamento do Pessoal Dirigente e da Chefia do ISSS constitui uma afronta à
autonomia regulamentar do ISSS, estando por isso o despacho de cessação de
funções ferido de incompetência absoluta, o que acarreta nulidade;
d) Ainda
relativamente ao aditamento de Julho de 2002, ao criar uma alínea f) que confere
poder de cessação por iniciativa do Governo, verifica-se que este põe em causa
o distanciamento das Instituições Públicas face à política partidária,
permitindo ao Governo saciar “as suas
clientelas político-partidárias” com funções no seio do ISSS. Assim, os
despachos da Secretária do Estado da Segurança Social veiculam uma clara
intenção de assimilar o ISSS a um serviço da Administração Directa, estando,
por isso, feridos de incompetência absoluta por violação do 199º CRP e 133º,
nº2, alínea b), 2ª parte do CPA, bem como do vício de desvio poder, uma vez que
a cessação de funções se limitou a abrir vaga para personalidades “político-partidárias íntimas com o XV
Governo Constitucional”;
e) Por fim,
mesmo que se entenda que os actos acima citados não padecem do vício de
nulidade, o despacho de cessação de funções é anulável, uma vez que carece de
fundamentação, limitando-se a citar o prescrito na Lei 49/99 relativa aos
funcionários da Administração Pública. A falta de fundamento viola o 125º/1 e 2
e 135º do CPA.
3 - A Secretária
do Estado da Segurança Social contra-argumentou:
a) O que está em causa é uma ordem de cessação de funções dos recorrentes de cargos públicos, para as quais haviam sido nomeados ao abrigo da confiança do Governo anterior. Logo, dado que o Instituto Público em causa faz parte da Administração indirecta do Estado e está sujeito aos poderes de superintendência do Governo, é pois perfeitamente legítimo que o Governo tenha a faculdade de fazer cessar as funções daqueles que pelo Governo também foram livremente nomeados, e que o faça segundo o regime da Lei 49/99. Assim, improcede a alegação de vício por incompetência absoluta;
b) A alteração ao Regulamento, com o aditamento de uma nova alínea que prevê a possibilidade de, por iniciativa de um membro de Governo, fazer cessar funções aos Chefes Distritais, vem evitar um regime de favorecimento duvidoso aos citados funcionários. A indemnização em causa mais não constitui que um privilégio injustificado de dúbia legalidade relativamente à generalidade dos dirigentes da função Pública, cabendo a revisão do regime nas atribuições do Governo;
c) O alegado vício de forma por falta de fundamento peca por improcedente, uma vez que a justificação apresentada (“necessidade de imprimir uma nova orientação à gestão dos serviços”) surge logicamente na sequência do Programa do XV Governo Constitucional. A prossecução dos fins do dito Programa depende da escolha de Chefes Distritais identificados com a nova missão estipulada. Neste sentido, os recorrentes, ao estarem identificados com a prossecução de um fim pertencente ao anterior Governo, não se adequam à direcção dos Centros Distritais;
d) Por fim, tendo-se verificado que os actos praticados tinham por legítimo fim a execução da nova política de segurança social, não tem procedência a acusação de desvio de poder.
a) O que está em causa é uma ordem de cessação de funções dos recorrentes de cargos públicos, para as quais haviam sido nomeados ao abrigo da confiança do Governo anterior. Logo, dado que o Instituto Público em causa faz parte da Administração indirecta do Estado e está sujeito aos poderes de superintendência do Governo, é pois perfeitamente legítimo que o Governo tenha a faculdade de fazer cessar as funções daqueles que pelo Governo também foram livremente nomeados, e que o faça segundo o regime da Lei 49/99. Assim, improcede a alegação de vício por incompetência absoluta;
b) A alteração ao Regulamento, com o aditamento de uma nova alínea que prevê a possibilidade de, por iniciativa de um membro de Governo, fazer cessar funções aos Chefes Distritais, vem evitar um regime de favorecimento duvidoso aos citados funcionários. A indemnização em causa mais não constitui que um privilégio injustificado de dúbia legalidade relativamente à generalidade dos dirigentes da função Pública, cabendo a revisão do regime nas atribuições do Governo;
c) O alegado vício de forma por falta de fundamento peca por improcedente, uma vez que a justificação apresentada (“necessidade de imprimir uma nova orientação à gestão dos serviços”) surge logicamente na sequência do Programa do XV Governo Constitucional. A prossecução dos fins do dito Programa depende da escolha de Chefes Distritais identificados com a nova missão estipulada. Neste sentido, os recorrentes, ao estarem identificados com a prossecução de um fim pertencente ao anterior Governo, não se adequam à direcção dos Centros Distritais;
d) Por fim, tendo-se verificado que os actos praticados tinham por legítimo fim a execução da nova política de segurança social, não tem procedência a acusação de desvio de poder.
4 – Atentando nas
alegações de falta de competência do Governo, o Supremo Tribunal
Administrativo, no seu Acórdão, invoca o princípio “tempus regit actum” para justificar a aplicação do disposto na
entretanto aditada alínea f) do supracitado Regimento, que vem, precisamente,
atribuir competência ao Governo para a prático do acto contenciosamente
impugnado, dando ainda razão à Secretária de Estado ao enquadrar o aditamento
numa correcção de uma “deficiência” ou omissão da regulamentação em vigor
relativamente à aplicação da Lei 49/99 dos funcionários da função Pública.
Conclui assim, por infundadas as alegações de incompetência e desvio de poder.
Relativamente à alegação de
vício por falta de fundamentação, o Acórdão, verificando da efectiva
transcrição do texto legal do art. 20º/2 da Lei 49/99“a necessidade de imprimir nova orientação à gestão dos serviços e de
modificar as políticas a prosseguir”, entende que há de facto uma carência
de fundamentação, exigida pelo art.º 268/3 CRP e pelo art.º 125/1 CPA. Segundo
o princípio da fundamentação, e citando, “o acto só está fundamentado
quando, pela motivação aduzida, se mostra apto a revelar a um destinatário
normal as razões de facto e de direito que determinaram a decisão.”. Neste sentido, “não está devidamente
fundamentado (…) o acto administrativo que assenta em considerações neutras e
meramente conclusivas, baseando-se em fórmulas genéricas extraídas de
formulários preexistentes." como se verificou no caso em questão.
Assim, acordaram os
seguintes termos:
“a) Conceder provimento ao recurso
jurisdicional com a consequente revogação do acórdão recorrido;
b) Conceder provimento ao recurso
contencioso e em conformidade anular o acto contenciosamente impugnado” por vício de falta de fundamentação.
5 – O Acórdão
acima sumariado ilustra vivamente a complexidade da relação entre o Estado e os
seus organismos de Administração indirecta, na qual se levantam continuamente questões
cuja resposta deve ser encontrada num emaranhado de diplomas legais e
princípios nem sempre de fácil ou intuitiva conciliação.
No presente caso, relevava
atender a duas importantes sensibilidades: por um lado a circunstância de
mudança de Governo e necessidade evidente de remodelar a Administração conforme
os seus ideais e fins, devidamente identificados no respectivo Programa; por
outro, atender aos interesses e direitos dos funcionários públicos em funções,
evitando a exploração de um regime que perpetuasse a sua dispensa com
leviandade, bem como aos limites da autonomia dos Institutos Públicos.
A mudança de Governo abarca quase
sempre uma mudança nos vectores axiológicos de orientação da Administração
Pública, constituindo um exemplo paradigmático da constante subordinação da
Administração à variedade ideológica dos diferentes partidos que vão assumindo
as rédeas governamentais. A eficiência do Governo depende da confiança que
exista entre os seus Ministros e os funcionários por eles tutelados nos
diversos organismos da Administração Pública, constituindo a nomeação e
dispensa destes um corolário dos poderes de superintendência e tutela exercidos
pelo Estado sobre os entes da Administração indirecta.
O litígio acima sumariado
levanta a pertinente questão de saber até que ponto é legítimo a um Secretário
de Estado fazer cessar as funções de Directores Distritais de um Instituto
Público que sempre pautaram a sua conduta com reconhecido zelo e mérito, para
posteriormente os substituir por indivíduos íntimos com a correspondente esfera
partidária. Em suma, qual a fronteira entre a cessação de serviços em nome da
prossecução uma nova política governamental e a dispensa de funcionários de
reconhecida eficiência para satisfazer um crónico nepotismo que parece
enraizado na prática partidária.
A realidade demonstra que o
desvio de poder, nestas situações, é sempre de difícil demonstração. Contudo,
se esta tarefa se revela algo herculiana, há outros mecanismos de protecção dos
funcionários públicos legalmente previstos que o Acórdão do STA soube
pertinentemente invocar. O princípio da fundamentação dos actos administrativos
revelou-se, no caso concreto, de suma importância na salvaguarda não somente do
Instituto Público, mas sobretudo no combate à leviandade, e até
insensibilidade, com que a Secretária de Estado havia abordado a reforma dos
Centros Distritais do ISSS.
Em suma, a Administração do tipo
indirecto, apesar de teoricamente bem esboçada, revela-se de funcionamento algo
frágil. É uma relação que, pela sua natureza, se perde por vezes em meandros de
burocracia, levantando questões difíceis cuja solução deve sempre ser
encontrada a partir de um ponto de vista de interesse público e, sobretudo, de
protecção da integridade e transparência do funcionamento do Estado.
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