A Discricionariedade Administrativa
A Administração Publica não
dispõe de liberdade constitutiva para escolher os fins que prossegue. Quem
define esses fins é o legislador, que é também responsável pela selecção dos
órgãos competentes para os prosseguir: daí que tudo o que diz respeito aos fins
e competências seja matéria em que a administração está vinculada à lei. Muitas
vezes também a lei impõe os meios que a administração há-de usar para atingir o
fim público previsto na norma (actos vinculados). Mas há outros casos em que a
lei se limita a definir o fim e os órgãos competentes para prosseguir. Neste
ultimo caso podemos dizer que há uma margem de livre decisão, ou,
discricionariedade.
Na época de Estado de Direito Liberal, a discricionariedade correspondia
a toda a actividade administrativa que não interferisse com matérias jurídicas.
Primeiramente, a administração gozava de um poder discricionário na medida em
que estávamos perante matérias que não disputavam com a lei. O princípio da
legalidade colocou a lei como acto normativo supremo e irresistível. Hoje, a
discricionariedade tem de ser entendida como uma concessão legislativa à
administração. É um poder próprio na decisão de casos concretos. Em suma,
podemos referir que a discricionariedade é a escolha entre várias alternativas
de actuação juridicamente admissíveis. Assim, na acção, a administração pública
pode agir ou não; pode ter várias escolhas; pode actuar de maneira criativa no
sentido de ter alternativas distintas; e pode agir por vários elementos
técnicos extra-jurídicos. A discricionariedade só é compatível com o princípio
da legalidade, isto é, a discricionariedade descobre na lei um
limite/fundamento para sua actuação.
O poder discricionário assumia um carácter não jurídico. Mas hoje não
podemos fazer a distinção dessa maneira. O direito não é mera legalidade, sendo
também constituído por princípios jurídicos fundamentais, pela Constituição,
pelo Direito internacional, por princípios gerais de direito administrativo,
por regulamentos administrativos e pelos próprios actos administrativos. Assim,
o poder discricionário tem que ser hoje concebido como um poder jurídico, em
que se exige à administração uma “tensão criadora do Direito do caso concreto”
– Prof. Rogério Soares.
A maior ou menor extensão do poder discricionário relaciona-se com
dois princípios: o princípio do Estado de Direito e o princípio da separação
dos poderes. Relativamente ao primeiro, podemos dizer que procura defender os
interesses dos cidadãos. Todavia, tendo um pensamento antigo da administração
agressiva, e inimiga dos cidadãos, procura-se que haja uma maior vinculação da administração
à lei. Assim, tem de haver um maior controlo da actividade administrativa pelos
tribunais. Já o segundo princípio é dissemelhante. Este proclama uma maior
autonomia e responsabilidade própria da administração. A administração é
responsável pela prossecução do interesse público, devendo fazer as escolhas e
tomar as decisões nesse sentido, estando o juiz responsabilizado pelo controlo
dessas decisões. Neste sentido, devemos salientar a irrepetibilidade das
decisões administrativas, a responsabilidade pelas suas opções e a maior
proximidade da administração a realidade dos factos.
Outro problema com que nos
defrontamos é saber como é que o legislador atribui o poder discricionário à administração.
Já diz M. Atienza: “Los conceptos jurídicos indeterminados y la
discrecionalidad administrativa tienen un punto en comun”. Não há dúvida que
estamos perante a concessão de poderes discricionários, quando a norma for
facultativa (referir “pode”), ou quando a estatuição compreender medidas
alternativas (A, “ou” B). E que acontece, quando estamos perante imprecisões de
no conteúdo dos conceitos? Agora, a questão que se coloca é saber se quando o
legislador utiliza conceitos indeterminados, pretende com isso atribuir poder
discricionário à administração. Perante esta pergunta podemos ter várias
posições:
-
Posições extremas:
• Teoria da
discricionariedade: sempre que o legislador utiliza conceitos indeterminados
está a conceder à administração o poder de agir discricionariamente.
• Teoria do
controlo total: quando a lei recorre a conceitos indeterminados, o legislador
não atribui quaisquer poderes discricionários à administração
- Posições
moderadas:
• Teoria da folga: qualquer tribunal pode refazer a interpretação que o
titular do órgão administrativo fez do conceito indeterminado, mas já não pode
pronunciar-se sobre a recondução da situação concreta, porque ai a administração
goza de uma margem de apreciação.
• Teoria da
defensabilidade: determina que o juiz não pode afastar a solução encontrada
pelo órgão ou agente administrativo como preenchendo o conceito indeterminado,
se for defensável que ela ainda se enquadra no conceito legal.
• Teoria da
prerrogativa de apreciação: o tribunal não pode refazer a interpretação feita
pelo titular do órgão administrativo, sempre que a referida interpretação
exigir uma apreciação especial dos factos
O problema dos conceitos
indeterminados é a interpretação. Não é possível distinguir nitidamente entre
interpretação de conceitos indeterminados e discricionariedade. Mas devemos
referir que é a discricionariedade interpretativa a que melhor retrata o
trabalho dos juízes, quando enfrentam situações de solução dúbia. Assim, há uma
pluralidade de soluções em qualquer situação de discricionariedade. Contudo, os
conceitos indeterminados só toleram, em cada caso, uma única solução, porque,
de outro modo, não seriam controláveis em via judicial.
A discricionariedade pode
ser então interpretativa ou estratégica. A primeira ocorre quando as
disposições jurídicas estão expressas com linguagem determinada; a segunda
ocorre quando as disposições jurídicas não prescrevem quais os meios
conducentes a um fim que se tem que adoptar.
Suponhamos que queremos viajar para Santiago de Compostela. Uns teriam
medo de andar de avião, pelo que iriam de comboio. Outros queriam ir mais
rápido pelo que iriam de avião. Outros achariam mais económico ir de carro. Há
possibilidade de justificar as opções tomadas, e é muito difícil decidir qual é
a melhor. Contudo, há algo que todas têm em comum: a sua finalidade. É aqui que
devemos interpretar, quando a lei o permite, a melhor solução para o caso
concreto.
As posições mais antigas de
Portugal eram a de afirmar que só haveria poderes discricionários, quando o
legislador concedia à administração o poder de escolher o conteúdo dos seus
actos, o que provinha exclusivamente de indeterminações estruturais. Haveria
discricionariedade, quando a lei permitia à administração: liberdade de escolha
entre várias soluções tidas como igualmente possíveis. A administração havia de
escolher a que entendesse ser melhor para o interesse público, escolha essa que
era livre. Quando surgissem conceitos indeterminados, estaríamos perante um questão
de interpretação e, portanto, fora do problema da discricionariedade. Mas
também na doutrina e jurisprudência portuguesa se admitia a existência de
discricionariedade imprópria: actividade administrativa insusceptível de
controlo pelos tribunais, mas a que não corresponderia uma liberdade de escolha
do conteúdo da decisão entre os vários legalmente possíveis, como acontecia com
a discricionariedade propriamente dita. O Prof. Freitas do Amaral refere três
casos de discricionariedade imprópria: liberdade probatória; discricionariedade
técnica e justiça administrativa. Esta mesma discricionariedade imprópria pode
representar um perigo, já que não fornece critérios substanciais para ajuizar
da densidade adequada do controlo judicial das decisões administrativas. Para o
Prof. Marcelo Rebelo de Sousa as situações referidas pelo Prof. Freitas do
Amaral não constituem discricionariedade, pois nelas não existe liberdade de
escolha.
Mas como limitar os actos
administrativos discricionários? Esta mesma administração, está sujeita ao fim
definido pela norma e sujeita ao direito, nomeadamente a princípios jurídicos
reguladores da actividade administrativa (266/ CRP + 3/2 CPA). O princípio da
prossecução do interesse público (art. 266 CRP + art. 4 CPA) é um desses
princípios e, além de não dever anteceder o princípio da legalidade, vincula
sempre a Administração Pública. Outro princípio é o da boa administração (art.
81/c’ CRP + art. 10 CPA), que se relaciona com o anterior e cuja relevância
jurídica se tornou inquestionável. Dois princípios que não se encontram
explicitamente acolhidos na CRP nem no CPA são o princípio da boa fé e da
protecção da confiança dos particulares. Relativamente ao primeiro, podemos
dizer que se refere à valoração da conduta administrativa de acordo com os
valores ou parâmetros básicos. A violação do princípio da boa fé gera
responsabilidade civil da Administração Pública perante os particulares. O
segundo princípio, o da protecção da confiança, tem-se vindo a autonomizar em
relação ao princípio da boa fé. Assume particular importância na proibição da
retroactividade de algumas leis administrativas, dos regulamentos e dos actos
administrativos em geral.
Quando a administração
decide com base em poderes discricionários, ela é norteada por tais princípios
jurídicos que lhe fornecem os parâmetros ou critérios da decisão que se mostram
como limites da decisão administrativa discricionária. Quando o órgão que
actuou não tinha legitimidade, o tribunal administrativo anulara o acto praticado.
Se se demonstrar que a administração não prosseguiu, através dos poderes discricionários,
o interesse público, este mesmo acto será anulado por desvio do poder
subjectivo. Já no que concerne ao uso dos poderes discricionários, a questão é
mais difícil de resolver. Sendo o critério de controlo mais vago, isto é,
constituído pelos princípios jurídicos anteriormente referidos, só a violação
ostensiva ou intolerável poderá basear a anulação jurisdicional dos actos
praticados ao abrigo de poderes discricionários.
A discricionariedade
consiste na liberdade conferida pela lei a um órgão administrativo, para que
este escolha, dentro de uma série limitada ou ilimitada de comportamentos
possíveis, aquele que lhe pareça o mais adequado à satisfação da necessidade pública.
Esta mesma discricionariedade nasce a partir da separação com a legalidade e da
interpretação de conceitos indeterminados. Onde há vinculação da Administração
Pública pela lei, há controlo jurisdicional do respeito dessa lei, mas, onde há
discricionariedade, não é possível um tal controlo. A partir da
discricionariedade administrativa chegamos aos princípios da boa fé e da
protecção da confiança, passando pelos princípios da
prossecução do interesse público e da boa administração, ambos definidos nos
termos da legalidade. É a discricionariedade que permite em
poucas palavras prosseguir os melhores caminhos em casos que devido às mudanças
históricas, sociais e económicas se justificam.
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