sábado, 3 de novembro de 2012

A Privatização da RTP: o cerne da questão


A Privatização da RTP: o cerne da questão


Antes de mais, importa esclarecer o sentido de administração e de serviço público. Sendo a administração pública o conjunto de serviços organizados e mantidos pela colectividade com vista ao cumprimento da tarefa fundamental da satisfação das necessidades colectivas, é fácil deduzir que o serviço público resultará de onde se manifeste uma intensa necessidade colectiva. Estes serviços podem ter origens múltiplas mas é certo de todos eles concorrem para a satisfação das necessidades colectivas. Estão divididos em três grandes categorias: segurança, cultura e bem-estar. A questão da Radio e Televisão de Portugal encontra-se inserida, claro está, no âmago cultural desta questão.

A transversalidade da prossecução do interesse público, cristalizada enquanto princípio geral que acompanha a actuação da administração do Estado, passa, na minha opinião, por um serviço público de televisão que ofereça aos cidadãos um acesso à informação despojado dos interesses atinentes às leis deste mercado. É importante deixar desde já bem clara a importância de um serviço público de televisão e a sua influência na história e cultura de um país. Baluarte do conhecimento, uma televisão pública pode ser até um veemente símbolo da nacionalidade, de conhecimento substantivo e educativo, de transparência de um serviço educacional eficaz e contributivo, que reúne toda a família em redor da televisão. Este é o serviço encarregue de moldar os horizontes dos cidadãos, dirigindo-os para valores e necessidades mais prementes. Este é o serviço que deve promover à aquisição de saberes, fortalecendo o sentido crítico do público, reforçando as condições para o exercício informado da cidadania e para o desenvolvimento de laços de solidariedade social. Uma televisão pública não pode prescindir nunca de garantir a transmissão de programas de carácter cultural, educativo e informativo para públicos específicos, bem como a emissão de programas que valorizem a economia e a sociedade portuguesa.

Cabe, agora, analisar alguns conceitos determinantes para o aprofundamento do tema.
Em sentido amplo, a privatização seria o processo de cedência, total ou parcial, de tarefas públicas a agentes privados. A destrinça entre a privatização de tarefas públicas e privatização no sentido de execução de tarefas públicas assume uma importância fundamental para a compreensão mais apurada do fenómeno genérico da privatização. Por outro lado, revela-se essencial evitar o risco de misturar ou confundir o significado de conceitos que, embora próximos, representam realidades diferentes. Na privatização de tarefas, o Estado renuncia a sua missão, confiando-a ao sector privado, à sociedade, podendo ainda, assumir uma responsabilidade pública de garantia. Todavia, em si mesma, a tarefa é privada, e como tal, pode exercer-se no contexto de liberdade da empresa. Inversamente, na privatização no domínio de tarefas públicas, estão envolvidas tarefas públicas, missões por cuja execução o Estado se responsabiliza. O Estado não tem aqui apenas o dever de garantir a obtenção de certos resultados ou a realização de certos fins, mas sim, um dever de executar, respondendo perante o povo, naquilo a que se chama “responsabilidade última pela execução da tarefa”. Em conclusão, do referido resulta que: a privatização material de tarefas ocorre no contexto da deslocação de uma incumbência do Estado para a Sociedade; por sua vez, a privatização do âmbito da execução de tarefas públicas processa-se no espaço exclusivamente publico, não pressupondo qualquer trânsito ou deslocação da tarefa em si mesma.
Jody Freeman apresentou o estado moderno administrativo como um “contracting state”, isto é, um Estado que interiorizou a cultura do contrato como um instrumento ao serviço da realização dos seus fins institucionais. O contrato representa um instrumento fundamental ao serviço das medidas de privatização no domínio da execução de tarefas públicas. Além dos clássicos contratos de concessão de obras e de servições públicos, o Estado recorre ainda a outros modelos de contrating out e de outsourcing, pela via dos quais confia a entidades privadas a gestão de missões públicas ou a realização de trabalhos essenciais para o desempenho das tarefas públicas pelo próprio Estado.

No panorama actual, o Estado é detentor de dois canais de televisão: RTP 1 e RTP 2. A missão e objectivos destes dois canais são fixados pela Lei e no Contrato de Concessão do Serviço Público de Televisão. Já as políticas da Empresa são estabelecidas pelo Conselho de Administração, em linha com os objectivos fixados e as orientações que vêm sendo transmitidas pela tutela. A Constituição da República Portuguesa (CRP), no nº 5, do art. 38º, refere que o Estado assegura a existência e o funcionamento de um serviço público de rádio e de televisão. Trata-se, pois, de uma obrigação do Estado que não é susceptível de uma diferente opção do legislador comum. A Lei nº 4/2001, de 23 de Fevereiro, e a Lei nº 27/2007, de 30 de Julho, respectivamente, lei da rádio e lei da televisão (actualmente, fase de revisão) prevêem a existência e o funcionamento de um serviço público. As referidas leis remetem os termos e condições do funcionamento dos serviços públicos para os respectivos contratos de concessão que regulam a prestação desse serviço. Os estatutos da Rádio e Televisão de Portugal, S.A. (RTP), concessionária dos serviços públicos de rádio e televisão, foram aprovados pela Lei nº 8/2007, de 14 de Fevereiro.

Assim, quanto à sua natureza jurídica e objecto, a RTP é uma sociedade anónima de capitais exclusivamente públicos e que tem por objecto principal a prestação dos serviços públicos de rádio e de televisão podendo, ainda, prosseguir quaisquer actividades, industriais ou comerciais, relacionadas com a actividade de rádio e televisão.

Posto isto, é inevitável fazer uma “ponte”, relacionando os serviços prestados pela RTP como entidade pública com a fatia que cabe a cada cidadão na sua manutenção; relacionando o contributo deste contrato para a cultura portuguesa com o facto de proceder ao cumprimento das obrigações postuladas no Contrato de Concessão. Foi dito pelo nosso Primeiro-ministro Pedro P. Coelho que, “só com a RTP o Estado gasta 400 milhões de euros”, o que se catapultou no facto inevitável de o Governo reduzir a capacidade de financiamento a esta empresa.

Na minha opinião, e tendo em conta os tempos de austeridade e de contenção que enfrentamos, não é sustentável que se mantenha a mesma fatia orçamental para a manutenção de ambos os canais. Não desvalorizando a sua importância, mas atenta à sua inviabilidade financeira tendo em conta o estado em que o País se encontra, talvez fosse pertinente o alcance duma fusão entre os dois, prosseguindo-se o fim de uma solução mitigada entre a programação de um e de outro. Afasto, assim, o cenário da privatização, já que essa modalidade obrigaria a uma venda de todo o espólio ancestral da RTP e deixaria o Estado órfão de um veículo comunicacional de elevado alcance sociológico e largaria ao desbarato para mais um canal privado, no qual a programação viria inevitavelmente a ser, mais do mesmo! Assim, parece-me que a solução do problema passaria por um estudo sobre a concessão da RTP, suavizando o peso da administração no sector. Desta forma, o Estado reservaria algum controlo material acerca da realização dos fins da nova estação, nomeadamente através da imposição de obrigações de serviço público pré-estabelecidas, enquanto estabelecia autonomia em relação à gestão patrimonial dos conteúdos do canal e, em caso de fracasso dos resultados fixados, podia como ultimo reduto resgatar a sua propriedade!

Raquel Frazão Vaz
Nº22097

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