domingo, 2 de dezembro de 2012



A problemática da delegação de poderes no âmbito da concentração e desconcentração dos mesmos
O Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 05/04/2005


Importa começar por fazer uma breve referência ao conceito de concentração e desconcentração de poderes. Tanto o sistema da concentração como o sistema da desconcentração dizem respeito à organização administrativa de uma determinada pessoa colectiva pública. Mas o problema da maior ou menor concentração ou desconcentração existente não tem nada a ver com as relações entre o Estado e as demais pessoas colectivas: é uma questão que se põe apenas dentro do Estado, ou apenas dentro de qualquer outra entidade pública. A concentração ou desconcentração têm como pano de fundo a organização vertical dos serviços públicos, consistindo basicamente na ausência ou na existência de distribuição vertical de competência entre os diversos graus ou escalões da hierarquia.

Seguindo o critério do prof Marcello Caetano,  “concentração de competência”, ou a “administração concentrada” é o sistema em que o superior hierárquico mais elevado é o único órgão competente para tomar decisões, ficando os subalternos limitados às tarefas de preparação e execução das decisões daquele. Por seu turno, a “desconcentração de competência”, ou “administração desconcentrada”, é o sistema em que o poder decisório se reparte entre superior e um ou vários órgãos subalternos, os quais, todavia, permanecem, em regra, sujeitos à direcção e supervisão daquele.   De referir que princípio da desconcentração administrativa encontra consagração constitucional no art. 267º/2 CRP.

Relativamente às vantagens  inerentes à desconcentração de competências, as mesmas estão relacionadas com um aumento na eficiência dos serviços públicos, o que acarreta uma maior rapidez de resposta e ainda uma melhor qualidade do serviço, dado que a desconcentração propicia a especialidade de funções e consequentemente um conhecimento mais aprofundado dos assuntos a resolver. Numa posição antagónica, quem refere as suas desvantagens apela para o facto de a multiplicidade de centros decisórios poder inviabilizar uma actuação coerente com a Administração.

Relativamente às espécies de  desconcentração, as mesmas podem apurar-se à luz de três critérios fundamentais – quanto aos níveis, quanto aos graus e quanto às formas. Quanto ao “níveis de desconcentração”, há que distinguir entre desconcentração a nível central e desconcentração a nível local, consoante ela se inscreva no âmbito dos serviços da Administração central ou no âmbito dos serviços da Administração local. Relativamente aos “graus de desconcentração”, ela pode ser absoluta ou relativa: no primeiro caso, a desconcentração é tão intensa e é levada tão longe que os órgãos por ela atingidos se transformam de órgãos subalternos em órgãos independentes; no segundo, a desconcentração é menos intensa e, embora atribuindo certas competências próprias a órgãos subalternos, mantém a subordinação destes ao poder do superior (que constitui a regra geral no Direito português). Por último, quanto às “formas de desconcentração”, temos de um lado a desconcentrarão originária, e do outro a desconcentração derivada: a primeira é a que decorre imediatamente da lei, que desde logo reparte a competência entre o superior e os subalternos; a segunda, carecendo embora de permissão legal expressa, só se efectiva mediante um acto específico praticado para o efeito pelo superior. A desconcentração derivada, portanto, traduz-se na delegação de poderes.

Versando agora sobre a questão da delegação de poderes propriamente dita, a mesma vem definida no artigo 35º n.º 1 do CPA. Assim, a delegação de poderes pode ser definida como o acto pelo qual o órgão da Administração, normalmente competente para decidir em certa matéria, permite, de acordo com a lei, que outro órgão ou agente pratiquem actos administrativos sobre a mesma matéria. Pode então dizer-se que, do ponto de vista da ciência da Administração, a delegação de poderes é um instrumento de difusão do poder de decisão numa organização publica que repousa na iniciativa dos órgãos superiores desta. O Pro. Diogo Freitas do Amaral considera assim a existência de três requisitos para a existência de delegação de poderes. O primeiro é a existência de uma lei de habilitação, que é uma lei que prevê expressamente a faculdade de um órgão delegar poderes noutro,sendo esta competência irrenunciável e inalienável. A própria CRP, no seu art.º 11.º,n.º 2 declara que “ nenhum órgão de soberania, de região autónoma ou de poder local pode delegar os seus poderes noutros órgãos, a não ser nos casos expressamente previstos na Constituição e na lei. A acrescentar ao referido, o artigo 29.º do CPA (no seu artigo 1.º e 2.º) refere que os princípios da irrenunciabilidade e da inalienabilidade da competência não impedem a figura da delegação da delegação de poderes. Em segundo lugar, é necessária a existência de dois órgãos, sendo um o órgão competente, denominado “delegante”, e outro eventualmente delegante, o “ delegado”. Por fim, é ainda necessária a pratica do acto d edelegação propriamente dito, no qual o delegante concretiza a delegação dos seus podere são delegado, permitindo-lhe a prática de certos actos na matéria sobre a qual é normalmente competente.

Importa saber distinguir as espécies de habilitação para a prática da delegação de poderes, e as espécies de delegações de poderes propriamente ditas. Quanto à habilitação, ela pode ser genérica ou específica. No primeiro caso, a lei permite que certos órgãos deleguem, sempre que quiserem, alguns dos seus poderes em determinados outros órgãos, de tal modo que uma só lei de habilitação serve de fundamento a todo e qualquer acto de delegação praticado entre esses tipos de órgãos (art. 35º 2/3 CPA). Em todos estes casos, porém, a lei impõe uma limitação importante (art. 35º/2 CPA): neste tipo de delegações só podem ser delegados poderes para a prática de actos de administração ordinária, por oposição aos actos de administração extraordinária que ficam sempre indelegáveis, salvo lei de habilitação específica. Entende-se que são actos de administração ordinária todos os actos não definitivos, bem como os actos definitivos que sejam vinculados ou cuja  discricionariedade não tenha significado ou alcance inovador na orientação geral da entidade pública a que pertence o órgão; se se tratar de definir orientações gerais e novas, ou de alterar as existentes, estaremos perante uma administração extraordinária. Quanto às espécies de delegação, refira-se: sob o prisma da sua extensão, a delegação de poderes pode ser ampla ou restrita, conforme o delegante resolva delegar uma grande parte dos seus poderes ou apenas uma pequena parcela deles. No que respeita ao objecto da delegação, esta pode ser específica ou genérica, isto é, pode abranger a prática de um acto isolado ou permitir a prática de uma pluralidade de actos: no primeiro caso, uma vez praticado o acto pelo delegado, a delegação caduca; no outro, o delegado continua indefinidamente a dispor de competência, a qual exercerá sempre que tal se torne necessário. Há ainda casos de delegação hierárquica – isto é, delegação dos poderes de um superior hierárquico num subalterno –, e casos de delegação não hierárquica – ou seja, delegação de poderes de um órgão administrativo noutro órgão ou agente que não dependa hierarquicamente do delegante.

Relativamente ao regime jurídico da delegação de poderes, a mesma está genericamente regulada no CPA (arts. 35.º a 40.º). Porém, existem ainda diplomas especiais, como a Lei Orgânica do Governo e a LAL, onde esta figura é referenciada. O Art.º 37 do CPA refere os requisitos do acto de delegação quanto ao conteúdo, no N.º1º do mesmo artigo (sendo estas verdadeiras condições de validade) e quanto à publicação, no N.º2 (condição de eficácia). Os poderes do delegante vêm referidos no art.º 39º e o artigo 38.º faz referência à necessidade de menção expressa dos actos praticados por delegação, bem como o órgão delegante. Relativamente à natureza destes actos, a regra geral é a de que todos os actos do delegado são definitivos e executórios nos mesmos termos em que o seriam se tivessem sido praticados pelo delegante. No que diz respeito à extinção da delegação, tem-se que, se a mesma for conferida apenas para a prática de um único acto, praticado esse acto a delegação caduca. Existem ainda dois motivos de extinção: a revogação (artigo 40.º al.a)) e a caducidade (artigo 40.º al.b)), sempre que mudar a pessoa do delegante ou do delegado. Retira-se do disposto o facto de a nossa lei encarar esta figura como um acto de confiança pessoal do delegante ao delegado.

É relativamente à natureza jurídica da figura que surgem as divergências entre a nossa doutrina. Existem três concepções principais acerca da natureza da delegação. Uma delas é a tese da alienação, defendida por Rogério Soares, e que vem definir a figura como um acto de transmissão ou alienação de competência do delegante, na qual a titularidade dos poderes para automaticamente para a esfera de competência do delegado. Esta tese é criticável pois na delegação de poderes, o delegante não abdica para sempre desses poderes. Por outro lado, o professor Marcello Caetano defende a tese da autorização, na qual a competência não é alienada nem transferida. Refere que o acto de delegação visa facultar ao delegado o exercício duma competência que, embora condicionada à obtenção de uma permissão do delegante, já é uma competência do delegado. Esta perspectiva é também ela criticável pois baseia-se no pressuposto de se estar a submeter determinada competência ao delegante e ao delegado ao mesmo tempo, ficando ambos os órgãos aptos ao mesmo tempo, o que não se verifica. Numa outra óptica, o professor Freitas do Amaral vem defender a tese da transferência de exercício, na qual refere que a competência exercida com base na delegação de poderes é alheia, decorrente da transferência do exercício dessa competência do delegante para o delegado. O que se trata realmente é do exercício em nome próprio de uma competência alheia. Refira-se aqui alguns pontos essências: o delegado não pode em circunstancia alguma exigir a delegação (podendo apenas gentilmente pedi-la); só um deles é competente em cada momento; o delegado, quando actua, fá-lo em nome próprio. Se o acto for inválido, é da sua exclusiva responsabilidade e não da do delegante. Para além disso, sendo o potencial delegado não um órgão da Administração mas um simples agente, se ele praticar determinado acto a descoberto, estaremos perante um caso de inexistência jurídica desse acto. Noutra perspectiva, o professor Marcelo Rebelo de Sousa vem referir a delegação de poderes como um acto administrativo de duplo efeito, tese um pouco ampla de mais mas dificilmente refutável, pois é disso que se trata.

Sobre o referido acima vem tratar o Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 05/04/2005 votado em unanimidade e que tem como referência doutrinária o professor Marcello Caetano no seu Manual de Direito Administrativo. O acórdão versa sobre o facto de actos praticados ao abrigo de delegação ou subdelegação de poderes válidas terem a mesma natureza dos actos que teriam sido praticados pelo delegante ou subdelegante.
 Desta feita, se o acto do delegante ou subdelegante fosse recorrível contenciosamente, também o seria o acto concreto praticado pelo delegado ou subdelegado. Praticado um acto por um subalterno, ao abrigo de uma subdelegação de poderes válida, o recurso interposto para o delegante não é necessário, mas sim meramente facultativo, pelo que o delegante não tem o dever legal de o decidir com a consequência de, não o fazendo, o recorrente poder presumir indeferida a sua pretensão, para efeitos do exercício do direito de impugnação contenciosa.
O acórdão recorrido afastou-a por considerar, em síntese, que o despacho hierarquicamente recorrido foi praticado no exercício de poderes subdelegados, que permitiam a definição de situações jurídicas concretas, com imediata produção de efeitos lesivos na esfera do recorrente, pelo que dele não havia recurso hierárquico necessário (mas sim recurso contencioso), o que afastava o dever legal de decidir do recorrido e impediu a formação do impugnado indeferimento tácito, carecendo, por isso, de objecto o recurso contencioso, o que o torna manifestamente ilegal.
Para o recorrente, as coisas não se passam assim, pelo facto de não decorrer da referência à subdelegação de poderes, constante do despacho contenciosamente impugnado, que o delegante tivesse poderes para praticar actos definitivos, imediatamente impugnáveis contenciosamente.
O Exmº Magistrado do Ministério Público alinha pela posição do acórdão recorrido, em virtude do inequívoco conhecimento, pelo recorrente, de que o acto em causa foi praticado por subdelegação de poderes, bastar para que dele tivesse que interpor recurso contencioso e não hierárquico.
Vejamos: A delegação de competências consiste no "acto pelo qual um órgão normalmente competente para a prática de certos actos jurídicos autoriza um outro órgão ou agente, indicados por lei, a praticá-lo também " (Marcelo Caetano, in Manual de Direito Administrativo, 10.ª edição, tomo I, pág. 226).
De acordo com pacífica jurisprudência deste STA, os actos praticados ao abrigo de uma delegação ou subdelegação têm a mesma natureza que teriam se praticados pelo delegante ou subdelegante (cfr., neste sentido, por todos, o acórdão deste STA de 13/5/2004, recurso n.º 48 143).
O recorrente alega que não foi cumprido o artigo 38.º do CPA, dado que da ordem em que foi publicitada a sua não aceitação ao curso não constavam quais as matérias subdelegadas nem quem as tinha delegado, o que o impossibilitou de ficar a saber o procedimento que devia seguir.
O acto hierarquicamente impugnado e alegadamente indeferido tacitamente foi praticado pelo despacho do Chefe da Repartição de Sargentos e Praças da Marinha de 15/10/2002, conforme se verifica da OP2 208/ 06 Nov. 02, referenciada no n.º 1 da matéria de facto dada como provada, da qual consta que esse acto foi praticado por subdelegação de poderes do superintendente do Serviço de Pessoal (vd. fls 64 e 76 a 78 dos autos), facto que o recorrente não põe em causa.
Foi, assim, cumprido o disposto no referido preceito do CPA, que apenas exige que o órgão delegado ou subdelegado mencione essa menção e não que mencione os despachos de delegação ou subdelegação, bem como o local da respectiva publicação, tal com exigia o artigo 30.º da LPTA, que foi expressamente revogado pelo artigo 6.º, alínea b) do Decreto-Lei n.º 229/96, de 29/11.
Perante uma situação em que a falta de menção dos despachos e da sua publicação crie dúvidas aos particulares sobre os meios a adoptar, o que devem fazer é lançar mão do meio previsto no artigo 31.º da LPTA.
Por outro lado, a revogação do referido artigo 30.º da LPTA ficou-se a dever à regulamentação da matéria por ele regulada no artigo 68.º do CPA, em cujo n.º 1, alínea c), se estatui que da notificação deve constar o órgão competente para apreciar a impugnação do acto e o prazo para este efeito, no caso do acto não ser susceptível de recurso contencioso, estatuição que vem sendo entendida por certa doutrina como legitimando o particular a inferir que, se nada for dito, se está perante um acto desde logo impugnável contenciosamente (cfr. Santos Botelho, Pires Esteves e Cândido de Pinho, in Código do Procedimento Administrativo, 2.ª edição, pág. 221).
Donde resulta que, in casu, tendo em conta o princípio da boa fé, que deve presidir a toda a actuação da Administração, é de considerar estar-se, em princípio, perante acto imediatamente impugnável contenciosamente, sendo certo que, se tal não acontecesse, sempre o recorrente estaria acautelado pelo disposto no artigo 56.º do CPA, que lhe permitiria a abertura do meio administrativo necessário à abertura da via contenciosa.
2. O recorrente defende ainda a recorribilidade do acto, em virtude de se não saber se o recorrido actuou na qualidade de Chefe da Repartição de Sargentos e Praças ou na de Presidente do Júri do concurso de admissão ao Curso de Formação de Sargentos, caso em que a delegação seria inválida, em virtude de, havendo recurso (administrativo) das deliberações do júri, o mesmo não poder ser decidido por um dos seus membros, dada a manifesta incompatibilidade de funções.
Mas também não lhe assiste razão.
Na verdade, é claro que o recorrido actuou na qualidade de Chefe da Repartição de Sargentos e Praças. Basta atentar no próprio despacho (hierarquicamente) recorrido, que constitui fls 69 a 80 dos autos, em que após a menção de "Despachos de Requerimentos" se refere que se trata de "Despacho do Chefe da RSP da DSP, por subdelegação do VALM SSP, de 22OUT15", o que afasta, claramente, a actuação na qualidade de presidente do júri.”

Este Acórdão foi realizado em conferência, na 2.ª subsecção da Secção do Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo. Do mesmo consta que: “ O que se discute no recurso jurisdicional é apenas a recorribilidade contenciosa do acto impugnado.

Atentando neste pequeno excerto (e não esquecendo que outros argumentos foram utilizados, da mais variada ordem, incluindo diplomas legais especiais relativos à actividade em causa), tomamos aqui conhecimento de um caso evidente de delegação de poderes e dos problemas que a mesma pode suscitar.




Raquel Vaz

N.º 22097
A3

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