domingo, 9 de dezembro de 2012

Dever de Obediência. Uma submissão ou uma opção?


Para que seja possível compreender o que é o dever de obediência temos que começar por explicar como é que este dever surge.

A organização dos serviços públicos segundo um critério vertical dá origem à hierarquia. Os serviços públicos podem ser organizados segundo três critérios: o já referido, em razão da matéria (organização horizontal) e, ainda, em razão do território (organização vertical). Mas o que nos interessa neste caso é a organização em razão da hierarquia. Traduz-se numa estruturação dos serviços em razão da sua distribuição por diversos graus ou escalões do topo à base, que se relacionam entre si em termos de supremacia e subordinação - esta é a definição que nos é dada pelo professor Freitas do Amaral. O modelo hierárquico administrativo é caracterizado pelo vínculo jurídico que existe entre dois ou mais órgãos, vínculo este que confere ao superior poder de direção e impõe ao subalterno o dever de obediência. Para além da característica já referida, a hierarquia caracteriza-se ainda pela comunidade de atribuições entre elementos da hierarquia, ou seja, é necessário que tanto o superior como o subalterno atuem para a prossecução de atribuições comuns. 

Existem duas modalidades de hierarquia: a hierarquia interna e a hierarquia externa. A hierarquia interna é um modelo de organização administrativo que tem por âmbito natural o serviço público e consiste num modelo em que se toma a estrutura vertical como directriz para estabelecer o ordenamento das actividades em que o serviço se traduz, ou seja, é uma hierarquia de agentes. Onde entre eles existem vínculos de superioridade e subordinação, trata-se basicamente de uma divisão de trabalho. A hierarquia interna é pois aquele modelo vertical de organização interna dos serviços públicos que assenta na diferenciação entre superiores e subalternos. Diferentemente, a hierarquia externa não surge no âmbito do serviço público, mas no quadro da pessoa colectiva pública e, embora também aqui se toma a estrutura vertical, é para estabelecer o ordenamento dos poderes jurídicos em que a competência consiste sendo, portanto, uma hierarquia de órgãos. Neste caso o que está em causa é a repartição das competências entre aqueles a quem está confiado o poder de tomar decisões em nome da pessoa colectiva.

Como já referido, da hierarquia resulta um vínculo de supremacia e subordinação que se estabelece entre o superior e o subalterno. O superior tem três poderes: o poder de direcção, o poder de supervisão e o poder disciplinar. Já o subalterno, em vez de poderes, tem sim um “dever de obediência”. Este dever consiste na obrigação do subalterne cumprir as ordens e instruções dos seus legítimos superiores hierárquicos, dadas em objecto de serviço e sob forma legal (art.3º nº7 do Estatuto disciplinar). Desta noção resultam os seguintes requisitos:

a)      Que a ordem ou as instruções provenham de legítimo superior hierárquico do subalterno em causa;

b)      Que a ordem ou as instruções sejam dadas em matéria de serviço;

c)      E que a ordem ou as instruções revistam a forma legalmente prescrita.

Face a estes requisitos, deve o subalterne acatar uma ordem que tenha provindo de legítimo superior hierárquico, versando sobre matéria de serviço e, que tendo sido dada pela forma devida, seja intrinsecamente ilegal?

A doutrina divide-se e, para a corrente hierárquica, existe sempre dever de obediência, não assistindo ao subalterno o direito de interpretar ou questionar a legalidade das determinações do superior – esta posição é defendida pelo professor Marcello Caetano, embora de forma mais temperada nos termos em que está regulada na lei portuguesa. Para a corrente legalista, não existe dever de obediência em relação a ordens julgadas ilegais, por isso o subalterno não deve obedecer a nenhuma ordem ilegal, dada a supremacia da lei sobre a hierarquia - é o que defende João Collaço.

Esta questão é mais complexa do que pode parecer à primeira vista, e a dúvida se deve ou não um subalterno obedecer a uma ordem ilegal não existe em vão. É verdade que o nosso sistema administrativo se encontra submetido ao princípio da legalidade, contudo, consagrar o direito ou dever de desobedecer a ordens ilegais dadas pelo superior hierárquico, é um factor de indisciplina nos serviços públicos. Fazê-lo é dar ao subalterno o direito de questionar a interpretação da lei perfilhada pelo superior hierárquico e caso se trate de uma hierarquia tal não deve acontecer.

A solução consagrada pelo direito positivo foi a de um sistema legalista mitigado, que resulta da Constituição da República Portuguesa, artigo 271.º nº 2 e nº 3 e do Estatuto disciplina de 1984, artigo 10.º. Estes artigos estabelecem os casos em que não há dever de obediência. A solução consagrada constitui claramente uma excepção ao princípio da legalidade disposto no artigo 266.º nº2 da CRP, pois o artigo 271.º nº 3 apenas legítima que o dever de obediência cesse quando implique a prática de um crime, nada diz sobre outras ilegalidades.

Em jeito de conclusão, é certo que há um dever de obediência, contudo o subalterno não é nem um escravo nem uma máquina e continua a ter vontade e liberdade. Mesmo tendo a vontade do superior mais força jurídica, o subalterno não fica de modo algum obrigado a obedecer-lhe cegamente. E a prova do que acabamos de dizer encontra-se inclusive na lei, como já foi referido quando esta confere ao subalterno competência para examinar todos os comandos hierárquicos e para, em certos casos, rejeitar a obediência. Na minha opinião, o subalterno não deve ser obrigado a ir contra a lei. Mesmo quando o subalterno cumpre o dever de obediência não é indiferente a sua vontade, pois caso ele tenha tomado uma decisão afectada por erro, dolo ou coacção, essa decisão tem-se por inválida. Isto mostra-nos que nem sempre o superior hierárquico assegura a prevalência da sua vontade sobre todas as matérias da competência do subalterno.

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