Para que
seja possível compreender o que é o dever de obediência temos que começar por
explicar como é que este dever surge.
A
organização dos serviços públicos segundo um critério vertical dá origem à
hierarquia. Os serviços públicos podem ser organizados segundo três critérios:
o já referido, em razão da matéria (organização horizontal) e, ainda, em razão
do território (organização vertical). Mas o que nos interessa neste caso é a
organização em razão da hierarquia. Traduz-se numa estruturação dos serviços em
razão da sua distribuição por diversos graus ou escalões do topo à base, que se
relacionam entre si em termos de supremacia e subordinação - esta é a definição
que nos é dada pelo professor Freitas do Amaral. O modelo hierárquico administrativo
é caracterizado pelo vínculo jurídico que existe entre dois ou mais órgãos,
vínculo este que confere ao superior poder de direção e impõe ao subalterno o dever
de obediência. Para além da característica já referida, a hierarquia
caracteriza-se ainda pela comunidade de atribuições entre elementos da
hierarquia, ou seja, é necessário que tanto o superior como o subalterno atuem
para a prossecução de atribuições comuns.
Existem duas modalidades de
hierarquia: a hierarquia interna e a hierarquia externa. A hierarquia interna é
um modelo de organização administrativo que tem por âmbito natural o serviço
público e consiste num modelo em que se toma a estrutura vertical como
directriz para estabelecer o ordenamento das actividades em que o serviço se
traduz, ou seja, é uma hierarquia de agentes. Onde entre eles existem vínculos
de superioridade e subordinação, trata-se basicamente de uma divisão de
trabalho. A hierarquia interna é pois aquele modelo vertical de organização
interna dos serviços públicos que assenta na diferenciação entre superiores e
subalternos. Diferentemente, a hierarquia externa não surge no âmbito do
serviço público, mas no quadro da pessoa colectiva pública e, embora também
aqui se toma a estrutura vertical, é para estabelecer o ordenamento dos poderes
jurídicos em que a competência consiste sendo, portanto, uma hierarquia de
órgãos. Neste caso o que está em causa é a repartição das competências entre
aqueles a quem está confiado o poder de tomar decisões em nome da pessoa
colectiva.
Como já referido, da hierarquia
resulta um vínculo de supremacia e subordinação que se estabelece entre o
superior e o subalterno. O superior tem três poderes: o poder de direcção, o poder
de supervisão e o poder disciplinar. Já o subalterno, em vez de poderes, tem
sim um “dever de obediência”. Este dever consiste na obrigação do subalterne
cumprir as ordens e instruções dos seus legítimos superiores hierárquicos,
dadas em objecto de serviço e sob forma legal (art.3º nº7 do Estatuto
disciplinar). Desta noção resultam os seguintes requisitos:
a) Que
a ordem ou as instruções provenham de legítimo superior hierárquico do
subalterno em causa;
b) Que
a ordem ou as instruções sejam dadas em matéria de serviço;
c) E
que a ordem ou as instruções revistam a forma legalmente prescrita.
Face a estes requisitos, deve o
subalterne acatar uma ordem que tenha provindo de legítimo superior
hierárquico, versando sobre matéria de serviço e, que tendo sido dada pela
forma devida, seja intrinsecamente ilegal?
A doutrina divide-se e, para a
corrente hierárquica, existe sempre dever de obediência, não assistindo ao
subalterno o direito de interpretar ou questionar a legalidade das
determinações do superior – esta posição é defendida pelo professor Marcello
Caetano, embora de forma mais temperada nos termos em que está regulada na lei
portuguesa. Para a corrente legalista, não existe dever de obediência em relação
a ordens julgadas ilegais, por isso o subalterno não deve obedecer a nenhuma
ordem ilegal, dada a supremacia da lei sobre a hierarquia - é o que defende
João Collaço.
Esta questão é mais complexa do que pode
parecer à primeira vista, e a dúvida se deve ou não um subalterno obedecer a
uma ordem ilegal não existe em vão. É verdade que o nosso sistema
administrativo se encontra submetido ao princípio da legalidade, contudo,
consagrar o direito ou dever de desobedecer a ordens ilegais dadas pelo
superior hierárquico, é um factor de indisciplina nos serviços públicos. Fazê-lo
é dar ao subalterno o direito de questionar a interpretação da lei perfilhada
pelo superior hierárquico e caso se trate de uma hierarquia tal não deve
acontecer.
A solução consagrada pelo direito
positivo foi a de um sistema legalista mitigado, que resulta da Constituição da
República Portuguesa, artigo 271.º nº 2 e nº 3 e do Estatuto disciplina de 1984,
artigo 10.º. Estes artigos estabelecem os casos em que não há dever de
obediência. A solução consagrada constitui claramente uma excepção ao princípio
da legalidade disposto no artigo 266.º nº2 da CRP, pois o artigo 271.º nº 3
apenas legítima que o dever de obediência cesse quando implique a prática de um
crime, nada diz sobre outras ilegalidades.
Em jeito de conclusão, é certo que
há um dever de obediência, contudo o subalterno não é nem um escravo nem uma
máquina e continua a ter vontade e liberdade. Mesmo tendo a vontade do superior
mais força jurídica, o subalterno não fica de modo algum obrigado a
obedecer-lhe cegamente. E a prova do que acabamos de dizer encontra-se
inclusive na lei, como já foi referido quando esta confere ao subalterno
competência para examinar todos os comandos hierárquicos e para, em certos
casos, rejeitar a obediência. Na minha opinião, o subalterno não deve ser
obrigado a ir contra a lei. Mesmo quando o subalterno cumpre o dever de
obediência não é indiferente a sua vontade, pois caso ele tenha tomado uma decisão
afectada por erro, dolo ou coacção, essa decisão tem-se por inválida. Isto
mostra-nos que nem sempre o superior hierárquico assegura a prevalência da sua
vontade sobre todas as matérias da competência do subalterno.
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