sábado, 8 de dezembro de 2012

Contextualização histórica do fenómeno da Privatização


No presente texto, debruçar-me-ei sobre a problemática da privatização desde os tempos mais remotos da civilização Grega aos dias hoje. Será, portanto, objecto deste mesmo texto as causas e fins que justificaram a privatização considerando os aspectos próprios de cada época. Como será possível constatar mais à frente, o papel da Administração varia mediante os diferentes contextos e necessidades do Estado, daí a importância de se efectuar uma reflexão sobre este fenómeno com vista a um enquadramento histórico-político do mesmo.
 O exercício de incumbências administrativas por privados como fórmulas concessionárias tem-se observado a partir da antiguidade Clássica, tanto na Grécia como em Roma. Contudo é na Idade Moderna, com um Estado mais sólido e organizado, que se verifica uma intensificação da utilização de mecanismos de privatização da Administração Pública. A título de exemplo, temos o caso de criação e doação das capitanias donatárias, e mesmo o sistema de doação de cartas de sesmarias, adoptados por Portugal nas colónias, em que extensas faixas de terra eram doadas aos Capitães Donatários que detinham consideráveis poderes de soberania sobre tal território e população, inclusive os de natureza administrativa e jurisdicional; ou ainda, a patrimonialização dos ofícios públicos em que a titularidade era transmitida por meios de Direito Privado como venda ou sucessão mortis causa, ou mesmo, através de arrendamento ou subarrendamento dos ofícios. Posteriormente, é comum a verificação do fenómeno de privatização no Estado Liberal, que promove um modelo de Estado Mínimo, e de menor interferência na sociedade.
No entanto, é necessário ter em consideração que a privatização assume características próprias no presente estágio do Estado de Direito Democrático. Além de uma complexidade nunca antes vista, muitas são as vertentes passíveis de enquadramento dentro deste conceito. Não apenas a transferência de titularidade ou exercício de tarefas públicas a particulares, como também a utilização de mecanismos de Direito Privado pela Administração em áreas que antes eram de exclusivo domínio do Direito Público. A par disso, as causas e consequências do fenómeno de privatização no panorama actual são distintas daquelas que justificaram em séculos passados, considerando os contornos e fins do Estado e da Administração Pública actualmente, bem como a sua posição diante e dentro da sociedade.
Perante esta nova conjuntura, vê-se inclusive uma permuta de valores e formas entre o Público e o Privado. Vinculações características de entidade públicas passam a reger a actividade de entes particulares, assim como, instrumentos privados tornam-se vulgares à actuação da Administração Pública. Deste modo, podemos falar numa atenuação das fronteiras entre esses dois campos, sobretudo, no que diz respeito à tradicional dicotomia entre Direito Público e Privado.
É muito discutida a apropriação da privatização da Administração Pública. Se este é um seguimento lícito, em que sectores deve ser executado, e ainda, até que ponto pode o Estado transferir a titularidade e/ou gestão de empresas e tarefas estatais. Para melhor compreensão das causas de utilização da privatização, é útil equacionar, a respectiva evolução histórica.
Desde o surgimento do Estado Moderno, a estrutura estatal sofreu variadas alterações. Tais alterações prenderam-se com a relação do Estado com a sociedade, bem como, com os fins e funções estatais. Com a concepção da unidade nacional e soberania, o Estado Moderno surge com o absolutismo, e é a partir daqui que se consagra uma estrutura estatal baseada na concentração do poder num comando central (na figura do Rei e os seus delegados). Ora, a vontade do Rei era lei, daí que qualquer acto exercido pelo mesmo não fosse passível de repressão ou discordância. Estamos, deste modo, perante uma relação de Soberano e Súbdito entre o Estado e o Indivíduo. O principal critério norteador da acção política era a razão do Estado e não a justiça ou legalidade. Assistia-se, portanto, a uma preocupação do Estado Absolutista em construir uma unidade nacional, envolvendo o Estado e a Sociedade, ao contrário do que sucedia durante a Idade Média.
Mediante a conjuntura apresentada, sentiu-se a crescente necessidade de enquadrar a actividade da Administração nos parâmetros de responsabilização e vinculação ao Direito. Posto isto, foi recurso técnico-jurídico corrente neste período a figura do Fisco que, como entidade regida pelo Direito Privado, pretendia dar aos particulares a garantia do acesso aos tribunais comuns para a protecção dos respectivos direitos. Portanto, no período Absolutista há que distinguir duas esferas de vinculação jurídica na actuação do Estado. Uma primeira em que os actos do príncipe estavam situados acima do direito comum, quando investido de poderes de soberania, e uma segunda esfera em que a Administração não actuava com poderes soberanos, mas sim como um particular. Neste âmbito encontrava-se a figura do Fisco subordinada ao Direito Comum.
Com as revoluções liberais (a Inglesa, Americana e Francesa), a queda do regime absolutista e, essencialmente, com as ideias de Estado de Direito e do constitucionalismo, o indivíduo deixa de ser súbdito e passa a ter o status de cidadão detentor de Direitos. Há uma profunda alteração na estrutura do Estado: não se fala em soberania do Príncipe, mas sim em soberania nacional; a lei passa a ser a expressão da vontade geral, e não da vontade do Rei. Como traços marcantes deste período temos a primazia do individualismo, a protecção da esfera individual de cada cidadão, a protecção dos direitos fundamentais de liberdade (através de uma necessária não intervenção do Estado no campo subjectivo de cada um) e a acentuada divisão entre o Estado e Sociedade. Um outro factor histórico relevante para tais transformações prende-se com a ascensão do capitalismo como modo de produção dominante e, como consequência, o fortalecimento político da burguesia. Compreende-se, assim, as razões que justificam o surgimento do Direito Administrativo enquanto Direito excepcional que vincula a actuação do Estado. Tendo em conta as presentes considerações, parece plausível afirmar que a principal finalidade dessas vinculações foi, à partida, garantir a liberdade individual, limitando o poder político dentro do Estado (através da divisão e separação) e fora do mesmo (reduzindo as suas funções e ingerências sobre a sociedade). Daí a denominação, neste período, de Estado Mínimo, caracterizado por uma Administração pouco interventiva.
Porém, no início do século XX, o modelo liberal demonstrou fraquezas e algumas novas formas de Estado surgiram como alternativa. Por um lado, brotam modelos de Estado Totalitários (tanto de extrema direita – Nazismo e Fascismo – como de extrema Esquerda com o Marxismo-leninismo) e por outro, surge o Estado de Direito Democrático que, em resposta à crise, apresentou o Estado Social. Inicialmente com a Constituição Mexicana de 1917 e logo de seguida com a Constituição de Weimar em 1919, foi nas constituições do segundo pós-guerra que este modelo se difundiu plenamente, sendo hoje o modelo predominante no Estado de Direito Democrático.
Ao contrário do que marcava o modelo liberal de Estado de Direito – com uma ruptura entre o Estado e Sociedade – no Estado Social a colectividade é o foco da actuação da Administração Pública, vinculada essencialmente à protecção e promoção do Direitos Fundamentais do Cidadão, e ao bem-estar social. Mais do que a simples preservação do individualismo tão promovido pelo Estado Liberal, o Estado Social reuniu o Estado e a Sociedade, valorizando acima de tudo o interesse do colectivo. Desta forma, a Administração passa então desempenhar uma função prestadora de serviços e o individuo passa a ter uma posição de utente frente à Administração Pública.
Contudo, este modelo, a par do que havia sucedido com o Estado Liberal, não sobreviveu aos excessos do sistema. O Estado Social com o seu ímpeto prestador, entrou em esferas que não eram da sua “competência”, pelo que as estruturas da Administração Pública e do Direito Administrativo não permitiram o seu desenvolvimento e apropriado desempenho, como ocorreu em certa parte do sector industrial. Como tal, a sobrecarga do Estado Social, o crescimento da dívida pública e a ineficiência das empresas públicas, levou a um gradual processo de privatização dessas tarefas, alterando-se, uma vez mais, o papel do Estado.
O processo de atenuação das tarefas excessivamente concentradas no Estado teve início na Grã-Bretanha com as privatizações do governo de Margareth Thatcher, seguido do Chile com o governo Pinochet. Com o derrube dos regimes Comunistas na Europa oriental, no decorrer dos anos oitenta, outro surto privatizador surge nas Repúblicas advindas da antiga URSS.
No caso de Portugal, há um factor que merece especial atenção: a política de nacionalizações. O texto inicial da Constituição de 1976 previa uma transição para um modelo de economia Socialista. Tal transição não ocorreu, mas como consequência desse programa inicial, surgiram inúmeras nacionalizações de empresas no país a partir da queda do Estado Novo. Com as reformas constitucionais ocorridas, durante os anos noventa, várias empresas estatais foram alvo de privatização ou reprivatização (devolução à sociedade civil de empresas anteriormente nacionalizadas). Em determinados sectores, com as nacionalizações, deu-se uma verdadeira inversão da lógica de mercado. Portanto, o Estado não se limitava a actuar sobre os sectores básicos da economia, mas, sobretudo, alargava o âmbito da sua actuação em áreas mais adequadas à iniciativa privada. Como exemplo de tal situação, o Estado Português chegou ao ponto de ser dono e comandar as duas principais empresas da indústria de cerveja nacional (CENTRALCER e UNICER), uma realidade pouco frequente até para países que conviveram com o regime socialista.
Com a retirada do peso do Estado sobre a economia e a sociedade civil e, consequentemente, com a alteração no modelo e formas de actuação da Administração Pública, há quem identifique um novo modelo estatal, não mais identificado com o Estado Social de Administração Prestadora, mas sim, com um momento de transição para o Estado Pós-Social de Administração planejadora e preocupada com a garantia das prestações essenciais.
De facto, é o Poder Executivo, no desempenho da sua função administrativa, que sofre grandes alterações mediante estas transformações. É, também, reconhecido que a administração da justiça e a estrutura administrativa do Poder Judicial não se adaptaram a uma justiça de massas, e que o Poder Legislativo foi afectado pelo incremento das formas directas de participação popular e das novas vinculações Constitucionais. No entanto, é a Administração Pública que não tem alternativa senão ampliar o âmbito da sua actuação, inclusive, passa a ser comum a referência, em textos constitucionais, do princípio da eficiência enquanto elemento norteador da actividade administrativa, como é possível observar no disposto do artigo 81º - Incumbências prioritárias do Estado – da Constituição da República Portuguesa: “Incumbe prioritariamente ao Estado no âmbito económico e social: c) Assegurar a plena utilização das forçar produtivas, designadamente zelando pela eficiência do sector público”. Neste novo estágio, cabe à Administração, através da regulação e planeamento dos sectores, garantir a prestação das tarefas públicas essenciais e da vida social.  

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