O uso do
direito privado pela Administração segundo a visão de Cabral de Moncada
Em que
medida pode a administração usar o direito privado na prossecução das suas
actividades próprias e para as quais necessariamente existe? Ao fazê-lo fica
desvinculado de todo um conjunto de deveres de ordem pública? Será o regime do
direito público com a presença dos poderes de autoridade um dever para a
administração, ou poderá este ser substituído?
Procuraremos
então, segundo a visão de Cabral de Moncada, responder a estas questões.
Antes de
mais, a concepção de Estado e de Administração tem vindo a sofrer evoluções ao
longo do tempo. Na fase anterior ao Estado Constitucional, ou seja, no
Estado-de-polícia era amplamente usado o direito privado, com finalidades
instrumentais para as suas atribuições. Note-se que, aqui, a actividade não era
administrativa, por não recorrer aos poderes unilaterais de autoridade. Os
particulares encontravam-se no mesmo plano da Administração e podiam
dirigir-se, assim, aos tribunais comuns para fazerem valer os seus direitos,
quando a Administração usava o direito privado. Fora do direito privado a
Administração era poder e a via judicial estava vedada aos particulares.
No período
liberal, anterior à Constituição de Weimar não se verificaram grandes
alterações, para além da grande força que a figura do Fisco foi ganhando.
Hoje em dia,
as exigências a fazer ao Estado são distintas, mudando-lhe o estatuto
atribuído, que passa de político a constitucional. Agora existem verdadeiras
tarefas administrativas e legislativas, consideradas de interesse público pela
própria Constituição, e de enorme importância, enquanto característica do
Estado constitucionalmente pretendido.
Agora, os
particulares têm ao ser dispor muitos meios processuais para a garantia dos
seus direitos contra as actuações unilaterais e autoritárias da Administração.
No entanto,
voltando ao tema que nos diz respeito, as razões para o uso do direito privado
no contexto actual são mais evidentes do que nunca. O direito privado permite a
obtenção de excedentes económicos, necessários para a promoção do bem-estar, o
que não pode ocorrer no direito público, começando pela sua natureza.
- A informalidade, certeza e capacidade de
adaptação do direito privado facilitam o encontro de vontades. Assim, Cabral de
Moncada considera que, “se é a actividade comercial o que a Administração quer
levar a cabo, seja para promover o bem-estar, seja por considerações políticas
colectivas, nada mais indicado do que o direito privado”.
A
aproximação ao direito privado por parte das empresas do sector público tem
sido bastante frequente.
A
privatização ressentiu-se do impacto da UE. Muito embora o Tratado, no seu
artigo 295.º tenha resguardado o regime da propriedade nos Estados-membros, a
realidade é que a generalização da livre concorrência e do mercado, assim como
as várias liberdades de circulação e a proibição de alguns subsídios, apenas
são compatíveis com a privatização de todo o sector público empresarial, na
opinião do Autor. Seguindo a expressão inglesa “privatisation brings regulation” o Autor considera que o principio
da menor intervenção do Estado é compatível com o respectivo controlo da forma
como são prestados os serviços públicos.
Podemos
assim afirmar que o triunfo do direito privado está relacionado com a
compreensão de que não há substituto do mercado, como meio geral de regulação
económica. A intervenção direito privado, deixou de ser um reflexo de opções
ideológicas para se tornar um meio natural da economia.
A razão de
ser do uso do direito privado pela Administração não é sempre a mesma: em
certos casos, relaciona-se com o desempenho das funções administrativas, sendo
que o direito privado acaba por corresponder a um esforço de eficácia; noutros,
relaciona-se com a tentativa de retirar os entraves burocráticos do direito
público. Já na Alemanha, importa frisar, que o direito privado foi sempre o
ambiente normal da dita Administração intervencionista.
É inegável o
complexo relacionamento existente entre o direito privado e o Direito Administrativo,
pois “tão depressa se analisa na privatização do direito usado pela
Administração, como na publicização do direito em causa” verificam-se no plano
descendente a partir da Constituição, conduzido à publicização, e no plano
ascendente a partir das necessidades de trato económico, conduzindo à
privatização. O que importa saber, é, que nenhum deles é exclusivo, deve
“combinar-se em doses variáveis, ao serviço da eficácia da acção administrativa
mas também da garantia dos particulares”, diz-nos o Autor. Sabemos que a
privatização do regime jurídico da actividade administrativa teve custos: o
regime administrativo está associado aos poderes unilaterais da administração e
uma garantia desses mesmos poderes perante o exercício do poder. Desta feita, a
privatização vai significar em parte, o desaparecimento e pode até virar as
costas às garantias proporcionadas aos particulares pelo Direito
Administrativo. São consequências inegáveis, verificadas pela experiência.
A verdade é
que o Direito Constitucional acaba por modificar o direito privado nas mãos da
Administração. Tal pode observar-se na influência limitativa que certos
princípios constitucionais têm sobre a liberdade contratual.
Em Portugal,
as exigências de imparcialidade estão bastante vincadas. São exemplos: as
incompatibilidades profissionais, a disciplina procedimental das despesas da
Administração, entre outras.
Assim sendo,
surgem os princípios como a imparcialidade e igualdade, que são aplicados ao
uso do direito privado pelas entidades públicas e à actividade das entidades
privadas integradas a administração.
Ao uso do
direito privado são impostas limitações constitucionais, como o artigo 18.º da
CRP e o artigo 266.º nº2 da mesma. No sentido da última, poderemos ainda ter em
conta os artigos 2º e 5.º do CPA.
Não podemos
concluir que todo o direito privado utilizado pela Administração esteja
constitucionalizado. O que se conclui é que este é permeável ao conteúdo
constitucional dos direitos fundamentais. Também a Constituição entende o
individuo autónomo, tendo em conta o livre desenvolvimento da personalidade e
apenas exigindo que colabore solidariamente para o todo social. É garantido no
texto da Constituição o individuo privado, base do direito civil.
Mesmo quando
a Administração exerce a actividade empresarial não se poderá comportar, nem o
faz, como sendo um particular. Assim, em conclusão, o fenómeno da privatização
insere-se numa tendência actual para a superação da lei e dos instrumentos
administrativos tradicionais. A Administração tem a liberdade de escolha das
formas orgânicas de administração, apesar do núcleo de funções do Estado poderá
não ser privatizável, tais como, na nossa opinião, os serviços de saúde e
educação. No entanto, independentemente do seu âmbito e natureza, não
representa a renúncia da garantia dos particulares no seu contacto com a
Administração. Como afirma o autor e bem “nada está perdido com a
privatização”.
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