domingo, 9 de dezembro de 2012


Frases para comentar (V)


V. Sobre o direito administrativo europeu e global:

“Assiste-se, então, a uma perda da dimensão estadual do Direito Administrativo. O que resulta do «desaparecimento da ligação necessária do Direito Administrativo ao Estado, tão característica dos primórdios do nosso ramo de direito, não só do ponto de vista interno como, agora também, do europeu e mesmo do internacional.” (Vasco Pereira da Silva, Do Direito Administrativo Nacional ao Direito Administrativo sem Fronteiras, in Ingo Sarlet/Vasco Pereira da Silva, Direito Público sem Fronteiras, p. 214)


A integração de Portugal na União Europeia e noutras organizações supranacionais tem levado a uma modificação dos institutos tradicionais do direito público. Fenómeno relativamente recente, não só no nosso país, mas comum aos outros ordenamentos jurídicos, especialmente europeus.

A “crescente abertura da estadualidade” (como chamam alguns autores), decorrente da integração de Portugal em diversas organizações internacionais tem, assim, contribuído, com a influência decisiva destas, para uma modificação das características do direito administrativo entendido como subordinado à lei, expressão legítima do poder democrático.

O entendimento tradicional da actividade administrativa não é harmonioso na colocação actual de novos problemas sobre a governação nacional de interesses públicos globais (ex. ambiente, direitos humanos, regulação da economia), que fazem com que uma decisão administrativa nacional tenha hoje importância em diferentes constelações jurídicas, exigindo novos modos de resolução de conflitos.

A integração do Estado em comunidades jurídicas internacionais e a sua vinculação a instituições internacionais de carácter inter-governamental (como a Organização Mundial de Comércio, o FMI ou o Banco Mundial), criadas com vista a combater e dar resposta a alguns desafios da pós-modernidade, tanto em áreas como a protecção do ambiente, dos direitos humanos ou até da regulação económica, possibilita que a esfera jurídica em que se move a Administração Pública deixe de estar limitada à concretização das políticas nacionais e passe a contar com esferas sobrepostas de “normatividade superestadual”, reguladora das relações jurídicas no espaço nacional, criando um “espaço administrativo multifacetado”.

O fenómeno em questão deu-se no nosso país mais intensamente com a crescente europeização do Direito Administrativo.

Contribuindo para esta “europeização” está o progressivo número de fontes jurídicas europeias relevantes em matéria de Direito e de Processo Administrativo e um reforço da integração jurídica horizontal com a adopção de políticas comuns, que tem como consequência a unificação da jurisprudência europeia e a aproximação das legislações dos diferentes Estados-Membros.

Assistiu-se, desta forma, “desaparecimento da ligação necessária do Direito Administrativo ao Estado” que caracterizava os primórdios desse ramo de direito. A actividade administrativa deixou de ser unicamente estadual, dando-se ao mesmo tempo o surgimento de uma dimensão internacional de realização da função administrativa (na esfera das organizações internacionais). Mas é no âmbito do Direito da União Europeia que se concretiza verdadeiramente esta dimensão “transfronteiriça” do Direito Administrativo, com a criação de uma verdadeira ordem jurídica, resultado da conjugação de fontes comunitárias com fontes nacionais e que vigora automaticamente na ordem jurídica dos Estados-Membros (esta recepção do direito europeu no nosso ordenamento faz-se através do artigo 8º da Constituição).

A construção da Administração Pública europeia assentou em princípios e regras diferentes dos tradicionais. Construiu a legitimidade, não sobre o princípio da legalidade e da juridicidade, mas sim sobre os princípios da participação, transparência e proporcionalidade. Este novo modo de produção do direito administrativo reflectiu-se em modificações nos ordenamentos jurídicos nacionais.

A influência do direito europeu sobre os ordenamentos jurídico-administrativos dos Estados-membros traduziu-se, mais concretamente, na alteração de algumas características deste ramo do direito como, por exemplo: a instituição de regras jurídicas comuns para os sujeitos privados e as entidades públicas (ex. em matéria contratual e em matéria de direito comercial); a mitigação da diferença entre direitos subjectivos e interesses legítimos (ex. o aprofundamento da cidadania activa determinando que em matéria ambiental e financeira, cada vez mais se reconheçam novos direitos procedimentais e processuais aos cidadãos para defesa de bens e valores jurídicos da comunidade, configurados como verdadeiros direitos subjectivos); a diminuição da discricionariedade administrativa (redução do peso das entidades públicas na escolha do bem comum e a necessidade da respectiva conformação com os estudos publicados pelas entidades internacionais às quais a UE se vincula em nome dos Estados-membros).

Concluímos, então, com a constatação de uma reconfiguração factual das estruturas da organização administrativa nacional em função de um desenho delineado por normas de direito europeu com manifestações práticas desta incidência do Direito da União Europeia no processo de adaptação, e mesmo de transformação, de conceitos e princípios tradicionais do Direito Administrativo dos Estados-membros, como sejam o princípio da legalidade, a natureza das fontes do Direito Administrativo ou a protecção provisória dos direitos dos administrados.


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