domingo, 9 de dezembro de 2012

Dimensões actuais da privatização administrativa




 Assiste-se hoje a um conjunto de transformações de facto e de direito que parecem inscrever-se num movimento generalizado e multiforme de privatização da Administração Pública.
São diversas, porém, e não podem ser confundidas, as dimensões desses fenómenos de privatização, no que respeita às atribuições, à organização e à actividade administrativa.

 Há a considerar, em primeiro lugar, os fenómenos de privatização substancial (material) de actividades, que se verifica quando uma tarefa antes atribuída ao sector público deixa de ser substancialmente pública e passa a ser substancialmente privada (no todo ou em parte) – é o caso, por exemplo, das telecomunicações e a produção e comercialização da energia eléctrica, que constituíam monopólios públicos.
Significa uma privatização de tarefas estaduais (distinta, portanto da privatização patrimonial, enquanto mera privatização de bens públicos) e, na linha definida por políticas europeias, refere-se, em regra, à prestação de serviços económicos de interesse geral.
Por isso mesmo, nos momentos pós-privatização da actividade, o Estado assume um novo papel, o de regulador, para, muitas vezes através de agências independentes, assegurar a concorrência no mercado e a garantia dos direitos dos utentes.

Outro fenómeno é o da privatização formal, que se refere à gestão ou à organização administrativa – as tarefas continuam a ser substancialmente públicas, mas são geridas pelos entes públicos segundo o direito privado ou então por entes públicos com forma privada.
Quando se privatiza apenas a gestão, estamos perante um fenómeno de empresarialização das pessoas colectivas públicas – é o caso das entidades públicas empresariais (por exemplo, hospitais-empresa).
Quando se privatiza a própria organização, há lugar à criação de pessoas colectivas privadas de mão pública ou entidades administrativas privadas (em regra, sociedades anónimas de capitais exclusiva ou maioritariamente públicos), que, em casos excepcionais, até podem ter vastos poderes públicos (é o caso das administrações portuárias).

Por fim, saliente-se um terceiro fenómeno, o da privatização funcional, que se refere à responsabilidade pelo exercício da actividade, incluindo o exercício privado de funções públicas – as tarefas continuam a ser substancialmente públicas, mas a sua execução é objecto de concessão ou delegação em entidades privadas (sob orientação ou fiscalização pública).
A participação de particulares no exercício de actividades públicas pode ser desenvolvida em diferentes graus – vai da mera colaboração subordinada à responsabilização efectiva, incluindo o exercício de poderes públicos de autoridade , e por diversas formas - concessões e parcerias públicas-privadas (com transferência de risco económico); externalização da realização de tarefas (contracting out); delegação de funções (privatização de procedimentos, substituição de controlos públicos por controlos privados, certificação privada); auto-administração ou auto-regulação publicamente regulada (desporto federado).
Numa perspectiva organizativa, cruzada com esta, a doutrina distingue, nos casos de privatização funcional, entre privatização orgânica formal(quando o ente privado que vai desempenhar a tarefa pública é uma entidade administrativa privada) e privatização orgânica material (quando a tarefa pública é desempenhada por verdadeiros privados (entidade privada colaboradora).

A privatização formal e a utilização, pelos entes públicos e pelos entes administrativos privados, de meios e formas de direito privado

No conjunto da actividade privada da Administração, estão em causa:
i) as actuações da Administração ou Estado-cliente – os negócios auxiliares ou instrumentais de arrendamento ou de compra;
ii) as actuações da Administração ou Estado-proprietário – a administração dos bens privados que integram o património das entidades públicas;
iii) as actuações da Administração ou Estado-empresário ou da Administração ou Estado-accionista – o exercício, através da criação de sociedades ou, actualmente, sobretudo, através da participação em sociedades, de actividades económicas, comerciais, industriais ou de serviços, em concorrência, no âmbito do designado ―sector empresarial do Estado (Região ou Município);
iv) as actuações da Administração- ou Estado-parceiro – através da celebração de contratos de direito privado para apoiar ou colaborar na realização de actividades económicas privadas de interesse social;
v) a utilização, em geral, da capacidade de direito privado para a satisfação directa de necessidades públicas (gestão privada ou empresarial), correspondendo ao exercício de tarefas (mesmo não económicas) que integram a função administrativa.

O recurso ao direito privado aparece, em regra, nas áreas da administração económica e social: por exemplo, em matéria de subvenções (bonificações de crédito, bolsas de estudo, doações de terrenos, subsídios, ajudas), fornecimento de bens ou serviços essenciais (cada vez mais reduzido, mas que ainda subsiste em sectores como a água e gás, transporte e distribuição de energia eléctrica, transportes ferroviários e algumas comunicações postais), gestão e utilização de instalações (portos comerciais, aeroportos) ou de estabelecimentos públicos (escolas, museus, teatros públicos, hospitais), bem como em intervenções no mercado (designadamente, por intermédio de agências de promoção do investimento, ou da gestão estratégica, através de sociedades holding, das participações empresariais).
Mas poderá – excepcionalmente e com limites e condições – estender-se a áreas mais tradicionais (funções nucleares) da acção estadual (prisões, segurança técnica), incluindo actividades que implicam o exercício de poderes de autoridade (aí põe-se o problema do exercício de poderes públicos pelas entidades administrativas privadas).
A Administração também recorre, nas empresas públicas de direito público (EPEs), ao contrato individual de trabalho (contrato privado), que é diferente do contrato de trabalho em funções públicas (contrato administrativo).
[A figura do ―contrato de trabalho em funções públicas, em vez da nomeação de funcionários, constitui hoje a regra das relações laborais públicas, fora das funções nucleares do Estado, não apenas na administração indirecta (nos institutos públicos não empresariais), mas na própria Administração directa, central e local – trata-se de um contrato administrativo, embora decorra do contrato individual de trabalho transformado.]

Os motivos que determinam a escolha pela Administração do direito privado (quando este não é o único meio disponível) são razões de eficiência e são várias: uma capacidade de gestão empresarial que beneficia da celeridade, da flexibilidade, da subtracção a controlos burocráticos (designadamente financeiros e contabilísticos) ou outros, quer no desenvolvimento da actividade, quer no vínculo de emprego – embora o objectivo seja sempre o cumprimento das finalidades da prestação do serviço público (com a sujeição aos princípios da universalidade, continuidade e adaptação) ou, em geral, a realização eficaz do interesse público, e não o lucro (eventuais ganhos ou excedentes são reinvestidos e não distribuídos, embora nas empresas públicas se tenha instalado a prática dos prémios de gestão).

No quadro da privatização formal, vale o princípio da liberdade de escolha limitada: não havendo determinação legislativa expressa, a utilização do direito privado por um ente público só é admissível, nos termos da lei, quando seja necessária ou conveniente à prossecução dos fins públicos, no contexto da especialidade das atribuições e com exclusão do núcleo das funções de autoridade [que, contudo, nos termos do direito comunitário, não incluem, por exemplo, a segurança privada, a inspecção de veículos e a revisão de contas].

A utilização do direito privado neste domínio aparece combinada com limitações e regalias de direito público no contexto do que se pode designar por direito administrativo privado.
As limitações decorrem do carácter público da Administração (que não pode saltar sobre a sombra da singularidade do seu poder e da sua função):
i) o princípio da decisão administrativa prévia – a dimensão actual da teoria dos dois degraus ou das duas fases, em que, primeiro, o se é decidido num plano jurídico-público, e, depois, o como é estabelecido num plano jurídico-privado;
ii) os limites especiais à liberdade negocial, quer procedimentais (necessidade de mecanismos concursais para escolha do co-contratante privado), quer substanciais (respeito pelos direitos fundamentais, pelos princípios gerais da actividade administrativa - prossecução do interesse público, boa fé, imparcialidade, igualdade e proporcionalidade – v. artigo 2.º, n.º 5 do CPA).
As prerrogativas e regalias manifestam-se nos poderes de carácter autoritário, que excepcionalmente podem coexistir, bem como na impenhorabilidade (absoluta ou relativa) de certos bens patrimoniais afectos a tarefas ou utilidades públicas.

A privatização funcional e o exercício de funções públicas por entidades privadas (incluindo os entes administrativos privados)

Admite-se, em geral, a delegação de funções públicas em matérias que sejam adequadas à gestão privada, isto é, que não envolvam essencialmente o exercício de poderes públicos de autoridade.
Essa transferência opera-se, designadamente, para a realização de tarefas públicas concorrentes (em que o ente público actua a par dos privados, como na área dos transportes) ou de garantia obrigatória (em que o Estado garante a prestação do serviço e predomina sobre os parceiros privados, como acontece na educação, saúde e segurança social) – mas pode estender-se a tarefas  exclusivas do Estado, se a delegação se fizer em favor de entidades administrativas privadas.

Os limites e as condições da admissibilidade do exercício privado de poderes públicos de autoridade
O desempenho privado de funções públicas pode envolver diversos tipos de poderes, como, por exemplo, poderes normativos, de determinação unilateral, de certificação, de criação de títulos executivos, de coacção directa ou de execução coerciva, mas está sujeito a limitações e condições.
Deve, desde logo, considerar-se a indelegabilidade de poderes constitucionalmente atribuídos a determinados órgãos (reserva constitucional), bem como, em geral, do uso legítimo da força militar e civil, que constitui monopólio estadual, sem prejuízo da acção directa e da legítima defesa.
Para além disso, a concessão de poderes públicos a entidades privadas está sujeita a limites subjectivos (não admissão da concessão a estrangeiros ou a entidades sujeitas a conflitos de interesses), qualitativos (só no âmbito de tarefas públicas e quando seja justificada pela situação) e quantitativos (os poderes públicos  concedidos ou delegados serão excepcionais e enumerados).
Quando é admissível, a atribuição de poderes públicos depende de algumas condições: a necessidade de previsão legal expressa da concessão e a
garantia de um regime público adequado à prossecução dos interesses comunitários, incluindo, consoante os casos, o poder de direcção ou orientação, o dever de fiscalização e o poder de revogação ou de rescisão por interesse público.

Lembre-se, por fim, que, quando esteja em causa o exercício dos poderes públicos de autoridade, há lugar à utilização, a título principal, do Direito Administrativo, na veste de direito público, sem prejuízo da sujeição, nas restantes tarefas administrativas, ao uso misto do direito privado e do direito administrativo.

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