Assiste-se hoje a um conjunto de transformações de
facto e de direito que parecem inscrever-se num movimento generalizado e
multiforme de privatização da Administração Pública.
São diversas, porém, e não podem ser confundidas, as
dimensões desses fenómenos de privatização, no que respeita às atribuições, à
organização e à actividade administrativa.
Há a considerar, em primeiro lugar, os fenómenos de
privatização substancial (material) de actividades, que se verifica quando uma
tarefa antes atribuída ao sector público deixa de ser substancialmente pública
e passa a ser substancialmente privada (no todo ou em parte) – é o caso, por
exemplo, das telecomunicações e a produção e comercialização da energia
eléctrica, que constituíam monopólios públicos.
Significa uma privatização de tarefas estaduais (distinta,
portanto da privatização patrimonial, enquanto mera privatização de bens
públicos) e, na linha definida por políticas europeias, refere-se, em regra, à
prestação de serviços económicos de interesse geral.
Por isso mesmo, nos momentos pós-privatização da actividade,
o Estado assume um novo papel, o de regulador, para, muitas vezes através de
agências independentes, assegurar a concorrência no mercado e a garantia dos
direitos dos utentes.
Outro fenómeno é o da privatização formal, que se
refere à gestão ou à organização administrativa – as tarefas continuam a ser
substancialmente públicas, mas são geridas pelos entes públicos segundo o
direito privado ou então por entes públicos com forma privada.
Quando se privatiza apenas a gestão, estamos perante um
fenómeno de empresarialização das pessoas colectivas públicas – é o caso das
entidades públicas empresariais (por exemplo, hospitais-empresa).
Quando se privatiza a própria organização, há lugar à
criação de pessoas colectivas privadas de mão pública ou entidades
administrativas privadas (em regra, sociedades anónimas de capitais exclusiva
ou maioritariamente públicos), que, em casos excepcionais, até podem ter vastos
poderes públicos (é o caso das administrações portuárias).
Por fim, saliente-se um terceiro fenómeno, o da
privatização funcional, que se refere à responsabilidade pelo exercício da
actividade, incluindo o exercício privado de funções públicas – as tarefas
continuam a ser substancialmente públicas, mas a sua execução é objecto de
concessão ou delegação em entidades privadas (sob orientação ou fiscalização
pública).
A participação de particulares no exercício de actividades
públicas pode ser desenvolvida em diferentes graus – vai da mera colaboração
subordinada à responsabilização efectiva, incluindo o exercício de poderes
públicos de autoridade , e por diversas formas - concessões e parcerias
públicas-privadas (com transferência de risco económico); externalização da
realização de tarefas (contracting out); delegação de funções (privatização de
procedimentos, substituição de controlos públicos por controlos privados,
certificação privada); auto-administração ou auto-regulação publicamente
regulada (desporto federado).
Numa perspectiva organizativa, cruzada com esta, a doutrina
distingue, nos casos de privatização funcional, entre privatização orgânica
formal(quando o ente privado que vai desempenhar a tarefa pública é uma entidade administrativa privada) e privatização
orgânica material (quando a tarefa pública é desempenhada por verdadeiros
privados (entidade privada colaboradora).
A privatização formal e a utilização, pelos entes
públicos e pelos entes administrativos privados, de meios e formas de direito
privado
No conjunto da actividade privada da Administração,
estão em causa:
i) as actuações da Administração ou Estado-cliente – os
negócios auxiliares ou instrumentais de arrendamento ou de compra;
ii) as actuações da Administração ou Estado-proprietário –
a administração dos bens privados que integram o património das entidades
públicas;
iii) as actuações da Administração ou Estado-empresário ou
da Administração ou Estado-accionista – o exercício, através da criação de
sociedades ou, actualmente, sobretudo, através da participação em sociedades,
de actividades económicas, comerciais, industriais ou de serviços, em
concorrência, no âmbito do designado ―sector empresarial do Estado (Região ou
Município);
iv) as actuações da Administração- ou Estado-parceiro –
através da celebração de contratos de direito privado para apoiar ou colaborar
na realização de actividades económicas privadas de interesse social;
v) a utilização, em geral, da capacidade de direito privado
para a satisfação directa de necessidades públicas (gestão privada ou
empresarial), correspondendo ao exercício de tarefas (mesmo não económicas) que
integram a função administrativa.
O recurso ao direito privado aparece, em regra, nas
áreas da administração económica e social: por exemplo, em matéria de
subvenções (bonificações de crédito, bolsas de estudo, doações de terrenos,
subsídios, ajudas), fornecimento de bens ou serviços essenciais (cada vez mais
reduzido, mas que ainda subsiste em sectores como a água e gás, transporte e
distribuição de energia eléctrica, transportes ferroviários e algumas
comunicações postais), gestão e utilização de instalações (portos comerciais,
aeroportos) ou de estabelecimentos públicos (escolas, museus, teatros
públicos, hospitais), bem como em intervenções no mercado (designadamente, por
intermédio de agências de promoção do investimento, ou da gestão estratégica,
através de sociedades holding, das participações empresariais).
Mas poderá – excepcionalmente e com limites e condições –
estender-se a áreas mais tradicionais (funções nucleares) da acção estadual
(prisões, segurança técnica), incluindo actividades que implicam o exercício de
poderes de autoridade (aí põe-se o problema do exercício de poderes públicos
pelas entidades administrativas privadas).
A Administração também recorre, nas empresas públicas de
direito público (EPEs), ao contrato individual de trabalho (contrato privado),
que é diferente do contrato de trabalho em funções públicas (contrato
administrativo).
[A figura do ―contrato de trabalho em funções públicas, em
vez da nomeação de funcionários, constitui hoje a regra das relações laborais
públicas, fora das funções nucleares do Estado, não apenas na administração
indirecta (nos institutos públicos não empresariais), mas na própria
Administração directa, central e local – trata-se de um contrato
administrativo, embora decorra do contrato individual de trabalho transformado.]
Os motivos que determinam a escolha pela Administração
do direito privado (quando este não é o único meio disponível) são razões de
eficiência e são várias: uma capacidade de gestão empresarial que beneficia da
celeridade, da flexibilidade, da subtracção a controlos burocráticos
(designadamente financeiros e contabilísticos) ou outros, quer no
desenvolvimento da actividade, quer no vínculo de emprego – embora o objectivo
seja sempre o cumprimento das finalidades da prestação do serviço público (com
a sujeição aos princípios da universalidade, continuidade e adaptação) ou, em
geral, a realização eficaz do interesse público, e não o lucro (eventuais
ganhos ou excedentes são reinvestidos e não distribuídos, embora nas empresas
públicas se tenha instalado a prática dos prémios de gestão).
No quadro da privatização formal, vale o princípio da
liberdade de escolha limitada: não havendo determinação legislativa expressa, a
utilização do direito privado por um ente público só é admissível, nos termos
da lei, quando seja necessária ou conveniente à prossecução dos fins públicos,
no contexto da especialidade das atribuições e com exclusão do núcleo das
funções de autoridade [que, contudo, nos termos do direito comunitário, não
incluem, por exemplo, a segurança privada, a inspecção de veículos e a revisão
de contas].
A utilização do direito privado neste domínio aparece
combinada com limitações e regalias de direito público no contexto do que se
pode designar por direito administrativo privado.
As limitações decorrem do carácter público da Administração
(que não pode saltar sobre a sombra da singularidade do seu poder e da sua
função):
i) o princípio da decisão administrativa prévia – a dimensão
actual da teoria dos dois degraus ou das duas fases, em que, primeiro, o se é
decidido num plano jurídico-público, e, depois, o como é estabelecido num plano
jurídico-privado;
ii) os limites especiais à liberdade negocial, quer
procedimentais (necessidade de mecanismos concursais para escolha do co-contratante
privado), quer substanciais (respeito pelos direitos fundamentais, pelos
princípios gerais da actividade administrativa - prossecução do interesse
público, boa fé, imparcialidade, igualdade e proporcionalidade – v. artigo 2.º,
n.º 5 do CPA).
As prerrogativas e regalias manifestam-se nos poderes de
carácter autoritário, que excepcionalmente podem coexistir, bem como na
impenhorabilidade (absoluta ou relativa) de certos bens patrimoniais afectos a
tarefas ou utilidades públicas.
A privatização funcional e o exercício de funções
públicas por entidades privadas (incluindo os entes administrativos privados)
Admite-se, em geral, a delegação de funções públicas
em matérias que sejam adequadas à gestão privada, isto é, que não envolvam
essencialmente o exercício de poderes públicos de autoridade.
Essa transferência opera-se, designadamente, para a
realização de tarefas públicas concorrentes (em que o ente público actua a
par dos privados, como na área dos transportes) ou de garantia obrigatória (em
que o Estado garante a prestação do serviço e predomina sobre os parceiros
privados, como acontece na educação, saúde e segurança social) – mas pode
estender-se a tarefas exclusivas do Estado, se a delegação se fizer em favor
de entidades administrativas privadas.
Os limites e as condições da admissibilidade do
exercício privado de poderes públicos de autoridade
O desempenho privado de funções públicas pode envolver
diversos tipos de poderes, como, por exemplo, poderes normativos, de
determinação unilateral, de certificação, de criação de títulos executivos, de
coacção directa ou de execução coerciva, mas está sujeito a limitações e
condições.
Deve, desde logo, considerar-se a indelegabilidade de
poderes constitucionalmente atribuídos a determinados órgãos (reserva
constitucional), bem como, em geral, do uso legítimo da força militar e civil,
que constitui monopólio estadual, sem prejuízo da acção directa e da legítima
defesa.
Para além disso, a concessão de poderes públicos a entidades
privadas está sujeita a limites subjectivos (não admissão da concessão a
estrangeiros ou a entidades sujeitas a conflitos de interesses), qualitativos
(só no âmbito de tarefas públicas e quando seja justificada pela situação) e
quantitativos (os poderes públicos concedidos ou delegados serão
excepcionais e enumerados).
Quando é admissível, a atribuição de poderes públicos
depende de algumas condições: a necessidade de previsão legal expressa da
concessão e a
garantia de um regime público adequado à prossecução dos
interesses comunitários, incluindo, consoante os casos, o poder de direcção ou
orientação, o dever de fiscalização e o poder de revogação ou de rescisão por
interesse público.
Lembre-se, por fim, que, quando esteja em causa o
exercício dos poderes públicos de autoridade, há lugar à utilização, a título
principal, do Direito Administrativo, na veste de direito público, sem prejuízo
da sujeição, nas restantes tarefas administrativas, ao uso misto do direito
privado e do direito administrativo.
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