O princípio da boa fé está
presente em todo o ordenamento jurídico. Já o estudámos em Teoria Geral do
Direito Civil e tem sido um auxiliar útil em Direito das Obrigações, não
esquecendo que já estudámos reflexos da sua actuação em Direito Internacional
Público. O Direito Administrativo não foge à regra e, no seu âmbito, o
princípio da boa fé encontra espaço para desempenhar o seu papel.
A Constituição consagra o
princípio da boa fé no art.266.º, nº2, enquanto princípio fundamental ao qual
estão subordinados os órgãos e os agentes administrativos, no exercício das
suas funções. A sua positivação constitucional decorre do próprio princípio do
Estado de Direito, por sua vez consagrado no art. 2.º da CRP: este implica a
protecção da confiança dos cidadãos face às actuações do Estado, implicando um
mínimo de certeza e de segurança na vida jurídica.
Também o Código de Procedimento
Administrativo consagra expressamente, no art. 6.º-A, a vigência do princípio
da boa fé no âmbito da actividade administrativa.
Apesar desta intromissão no
Direito Público, foi no Direito Civil que o princípio da boa fé mais se
desenvolveu. A sua configuração privatista foi acolhida, com muita moderação,
no âmbito do Direito Administrativo. Vejamos em que medida a boa fé está
presente no Direito Administrativo Português.
2. Considerações gerais:
O princípio da boa fé impõe que a
conduta administrativa se funde em valores básicos do ordenamento jurídico,
implicando que a Administração adopte condutas consequentes e não
contraditórias, em função dos fins que se propõe alcançar. Não só determina que
a Administração Pública actue de boa fé para com os particulares, como
significa que a Administração deve dar exemplo aos particulares de observância
desse princípio. Tal como FREITAS DO AMARAL, sustentamos que, sem a boa fé,
nunca se poderia afirmar que o Estado é “pessoa de bem”.
O princípio da boa fé divide-se
em dois subprincípios: a tutela da confiança (art. 6.º-A, n.º 2, al.a)) e a
primazia da materialidade subjacente (art.6º-A, nº2, al.b)).
3. A tutela da confiança:
A aplicação do subprincípio da
tutela da confiança estará sujeita, no Direito Administrativo, aos mesmos
pressupostos utilizados no Direito Civil: 1) a existência de um comportamento
que gera uma situação confiança; 2) existência de uma justificação para a
confiança; 3) existência de um investimento de confiança; e 4) a frustração da
confiança por quem a gerou. Como defende MENEZES CORDEIRO, estes pressupostos
formam um sistema móvel, podendo a falta de um deles ser suprida pela
intensidade especial com que um outro se verifique.
O princípio da tutela da
confiança encontra várias concretizações jusadministrativistas, mas é em sede
de formação dos contratos administrativos que se afirma com especial força,
determinando que a Administração não altere injustificadamente o seu critério,
não negue o prometido, não formule novas exigências, etc... O mesmo é dizer que
podem ser chamados a intervir os deveres acessórios que decorrem do art. 227º
do Código Civil.
A jurisprudência tem entendido
que o princípio da boa fé só influi no âmbito da actividade discricionária da
Administração, não cabendo no plano da actividade legalmente vinculada. MARIA
DA GLÓRIA GARCIA, na anotação que faz ao art.266º da CRP, defende posição
contrária, sem apresentar, contudo, qualquer argumento. Porém, é possível
entrever o que possa fundamentar a aplicação do princípio da boa fé no âmbito
da actividade legalmente vinculada: por um lado, no processo interpretativo que
compete à Administração (também há interpretação quanto a normas de poder
vinculado), parece ser imperativo constitucional e procedimental que esta
cumpra a actividade interpretativa de boa fé, não podendo violar a confiança
que se tenha suscitado (como ocorreria no caso de um agente administrativo
interpretar um poder vinculado num sentido, e de um outro realizar uma
interpretação diversa); por outro lado, a boa fé introduz uma série de deveres,
tais como deveres de actuação consequente, de informação criteriosa, entre
outros, que também existem no plano dos poderes vinculados.
A interpretação do acto
administrativo não se esgota nos elementos literais, sendo também relevante,
para a fixação do seu sentido e alcance, o sentido que a Administração atribuir
ao acto, na medida em que se presume que esta agiu de boa fé (e, por isso, de
forma não contraditória). Está assim a boa fé a impregnar o processo
interpretativo daquela que é uma das formas por excelência da actuação
administrativa. A tutela da confiança (contida no art. 6.º-A, n.º 2, al.a))
impõe que se proteja a posição do particular que, face a um acto administrativo
e a uma actuação da Administração, assume que o sentido apropriado a dar ao
acto administrativo é aquele que a Administração dá. Se assim não fosse,
estar-se-ia perante legitimação de um verdadeiro venire contra factum proprium, em que a Administração podia
materialmente adoptar um dos sentidos possíveis do acto e depois invocar erros
interpretativos contra o particular.
Uma outra importante manifestação
do princípio da boa fé é a produção de alguns efeitos jurídicos do acto
administrativo nulo. Segundo o art. 134.º, n.º 1 do CPA, «o acto nulo não
produz qualquer efeito». Atente-se porém no facto de os actos nulos poderem
produzir efeitos com base em «situações de facto, (…) por força do simples
decurso do tempo, de harmonia com os princípios gerais de direito» (n.º3, art.134º,CPA).
Ora, isto quer dizer que os actos nulos vêem alguns dos seus efeitos de facto
consolidados em efeitos jurídicos, pelo decurso do tempo. Não quer isto dizer
que basta a mera passagem do tempo: esta precisa de se harmonizar com os
princípios gerais de direito. Ora, isto opera uma recepção do princípio da boa
fé. Está em causa, particularmente, a tutela da confiança do particular que,
com base numa situação de facto, acredita justificadamente que o acto é válido
e produz efeitos. Mas, qual o sentido de o único facto admitido como
justificação para a produção de efeitos do acto nulo, previsto no art.134º,
nº3, ser o decurso do tempo? Do ponto de vista prático, é fácil de perceber: o
decurso do tempo é objectivo e de fácil avaliação.
Mas, pergunto-me, face a uma
outra qualquer situação de facto, ainda que não cristalizada pelo decurso de um
lapso relevante de tempo, se não será possível admitir a produção de alguns
efeitos aos actos nulos. A resposta parece-me dever ser positiva: em situações
de facto tais, que suscitem no destinatário do acto a confiança, quer na sua
validade pura e simples, quer até na sua aptidão à produção de efeitos
determinados, poderá a boa fé exigir a produção desses efeitos, nos quais o
destinatário do acto confia. O que já não se me afigura correcto, porém, é
procurar na boa fé a convalidação de um acto nulo; parece-me antes que a boa fé
se torna per se num novo título
jurídico, que manda, por razões de variada natureza, acatar os efeitos de um
acto nulo.
4. A primazia da materialidade subjacente, no art. 6.º-A,
n.º 2, al. b)
É sempre difícil definir o que
seja a materialidade subjacente e, mais ainda, qual seja o sentido do art.
6.º-A, n.º 2, al.b) do CPA. O subprincípio da primazia da materialidade
subjacente convoca a ideia de que o Direito não se basta com meras actuações
formais e exige que aos comportamentos corresponda uma verdade material, que
traduza uma ponderação finalística de cada conduta. Este subprincípio é de
extrema importância, pois é através dele que se proíbe o exercício inadmissível
de posições jurídicas.
Muitas vezes, o subprincípio da
materialidade subjacente é ignorado por ser considerado incompatível com o
princípio da legalidade, que supostamente introduziria um formalismo tal a que
não era possível aquele subsumir-se, e ainda por se julgar o seu conteúdo pouco
útil, visto que estaria absorvido pelo princípio da proporcionalidade. Esta
mesma doutrina vem dizer que o princípio da materialidade subjacente já adquire
relevância enquanto parâmetro das condutas dos particulares.
Tal posição traduz uma visão
autoritária da Administração e tem ínsita a ideia de que os particulares são
pouco confiáveis, sendo a Administração de plena confiança. Porém, a primazia
materialidade subjacente encontra, como afirma MARCELO REBELO DE SOUSA,
consagração legal explícita na alínea b) do art.6º, nº2, do CPA, pelo que será
inadmissível qualquer tentativa de desvincular a Administração do respeito pela
materialidade subjacente. Efectivamente, ao apelar ao «objectivo a alcançar com
a actuação empreendida», o CPA impõe como critério de actuação, tanto aos
particulares como à Administração, a ideia de que os comportamentos devem
corresponder à verdade material, e não à mera verdade formal; parâmetro este
que não cabe, de forma nenhuma, no princípio da proporcionalidade, que mais
parece impor uma ponderação da medida, necessidade e adequação da actuação,
atendendo ao fim, do que preocupar-se com a verdade material, que é uma exigência
de Justiça.
Creio que o subprincípio da
materialidade subjacente pode trazer para o Direito Administrativo figuras como
as inalegabilidades formais (tornando inadmissível que a Administração, tendo
provocado o vício de forma de má fé, possa beneficiar desse vício, inquinando a
actuação administrativa), por exemplo.
Ainda assim, o princípio da boa
fé tem de ser aplicado com cautela. A boa fé apresenta-se sempre como a
“válvula de escape” do sistema, apta a corrigir as injustiças que, pela
violência que apresentem face à ordem jurídica, devam ser repudiadas.
Sem comentários:
Enviar um comentário