domingo, 9 de dezembro de 2012

As privatizações discutem-se com certeza!


A “redefinição das funções do Estado” é um lugar comum. Entre políticos, comentadores, analistas, é frequente o recurso a este chavão, sobretudo em períodos de crise como o que actualmente vivemos. Correndo o risco de não estar a retirar da expressão toda a sua potencialidade, tampouco a utilizá-la com a mesma conotação com que o fazem os especialistas, considero-a adequada para abordar, aos olhos do Direito Administrativo, até onde pode e deve ir o Estado na prossecução do interesse público e na prestação de serviço público.
Ao longo do semestre muito foi abordada, sobretudo em sede de aulas práticas, a questão das privatizações, tanto das empresas públicas como da própria educação (particularmente aquando do debate das universidades) e até mesmo da saúde. É por esse motivo que me parece oportuno, neste que é o meu último post do semestre, fazer uma reflexão geral sobre toda esta temática, agora que se aproxima a simulação final que terá como base precisamente esta questão.

O século XX foi riquíssimo ao nível das teorizações económicas. Se, por um lado, o século despertou sob a égide do liberalismo económico, depressa a 1ª Guerra Mundial, e, sobretudo, a grande depressão económica americana, fizeram surgir o keynesianismo. A contradição entre o laissez faire (do liberalismo) e o intervencionismo, do new deal (de Keynes) vem sofrer novo revés nos anos 70, no seguimento da grande crise petrolífera. Com palco privilegiado no Reino Unido (de Thatcher) e nos Estados Unidos (de Reagan), o Neoliberalismo, que Friedman preconizou, pautou durante as últimas décadas do século XX a doutrina económica Ocidental, com as falhas que todos temos vindo a sentir diariamente no próprio bolso.
Devemos aprender com a história. Devemos olhar para ela, reflectir sobre os erros, melhorando no futuro. Também este é um lugar comum, mas desta feita ainda com mais aplicabilidade para o tema que me proponho a debater.
O Dr. Domingos Soares Farinho, num artigo que já tive oportunidade de tratar num anterior post, tem uma passagem que me parece da maior pertinência versar nesta exposição. O autor fala de uma “missão de garantia” que o Estado assume, podendo inclusivamente falar-se num novo tipo de Estado.
Em síntese, a ideia passa não por seguir o modelo liberal, no qual o Estado não combate a fragmentação da sociedade, nem a pretende suprir ou substituir, mas, ao invés, escolhe áreas essenciais que retira da esfera privada , nem o modelo do Estado Social, em que o Estado assume o combate contra a fragmentação social, tornando-se prestador e assim se substituindo ou competindo com as iniciativas privadas da Sociedade. Trata-se, então, de um modelo pós-social em que o Estado é chamado a prestar um papel de garantia, na sua “veste de Estado regulador”.

Finda esta explanação,  cabe então passar ao tema propriamente dito. Até onde pode e deve ir o Estado? O que deve ser público e o que deve ser privado?
Quando, no início do semestre, optei pelo tema “vantagens e desvantagens dos modelos privatizados” passei algum tempo à procura de uma resposta concisa, directa e inquestionável à questão. Não obstante o esforço, o que é facto é que não consegui. Mais tarde, quando, dentro do grupo, assumi o debate do tema da questão da privatização da RTP, embora me tenha aproximado mais da tal conclusão, o que é facto é que também aí, mesmo com um tema específico, não consegui.
E estas duas (falhadas) reflexões pessoais conduziram-me a uma frustrante mas verdadeira conclusão sobre esta temática: Depende sempre dos casos.
Porém, apesar de frustrante, essa resposta traz consigo um importantíssimo esclarecimento: nenhuma ideologia política, seja ela de Direita, de Esquerda ou de Centro trará as respostas necessárias a todas as questões, e isto porque, e uma vez mais, elas são casuísticas.

Existem, isso sim, linhas orientadoras de raciocínio que sempre devem estar presentes num debate sobre estas matérias. Sendo, desde logo, curioso verificar que durante muito tempo vigorou em Portugal aquilo que o professor Eduardo Paz Ferreira refere como um “Princípio da irreversibilidade das nacionalizações”, que foi afirmado no texto originário da Constituição em 1976, tendo-se mantido até à revisão constitucional de 1989. O Professor adverte para o facto de, hodiernamente, se verificar uma inversão algo paradoxal desta situação, para o seu simétrico, naquilo que apelida de “irreversibilidade das privatizações”, que embora não tenham uma consagração constitucional, têm-na no famigerado memorando assinado com a Troika.
Durante os últimos vinte anos Portugal tem praticado um extenso programa de privatizações que chega agora às áreas mais sensíveis, isto porque atinge, actualmente, as áreas de serviços fundamentais para a vida da comunidade (como seja a água ou a luz, a título de exemplo).
Muito se fala das consequências para a população deste tipo de privatizações. E parece-me consensual que a única forma de garantir a manutenção da sua chegada a todos e da sua qualidade é que seja o Estado a suportar esse gasto extraordinário (e isto porque, sob o ponto de vista económico, não é racional para os CTT entregar cartas na ilha do Pico, nos Açores, por exemplo) e fá-lo sob a forma das indemnizações compensatórias.  É o “Estado Garantia” a funcionar. (Note-se, como exemplo dessa diminuição de qualidade, o caso dos comboios ingleses, em que a manifesta queda de qualidade leva, neste momento, o governo inglês a reponderar a sua nacionalização).
Chegado a este ponto considero pertinente incluir a opinião do professor Vital Moreira, que diz:  “O Estado não deve ser um empresário, mas há serviços públicos que devem continuar a ser da sua responsabilidade”. Será, porém, justo que o Estado suporte os custos do serviço público sem que retire igualmente qualquer vantagem do negócio em causa? Isto é, e colocando a questão em linguagem corrente, será justo que o Estado roa os ossos (pagando indemnizações compensatórias pela efectivação do serviço público) e deixe a carne para os privados, que retiram o lucro das suas actividades?
É certo que o Estado não é um empresário, e pode-se até questionar até que ponto tem legitimidade para tomar certas actividades que poderiam estar nas mãos de privados a gerar mais lucro, mas será que o Estado não pode ter lucro? Estará obrigado a deixá-lo para os privados e gastar o erário público compensando-os pelo serviço público que prestam? Fica a questão.

Outro ponto de discussão comummente levantado é respeitante à ineficiência de gestão das empresas, quando sob alçada do Estado. E, aqui, sou tentado a concordar com a generalizada opinião. A excessiva burocratização, a pesadíssima máquina do aparelho de estado incentiva a ineficiências. Sendo certo que não acontece com todos os sectores, é igualmente afirmativo que uma boa quota-parte do Sector Empresarial do Estado padece deste mal. Serão os modelos de gestão privados um garante de gestão eficiente e de alcance do lucro? Per si, naturalmente que não. Mas, parece-me, estar-se-á sempre mais perto da gestão eficiente na esfera privada do que na esfera pública. E isto porque no domínio privado as empresas concorrem numa simples lógica de mercado e de concorrência, porque existe uma responsabilização mais fácil e directa dos agentes prejudiciais, e porque existirá tão somente o objectivo da prossecução do lucro. Todos estes factores associados tenderão a condicionar a gestão no sentido de uma maior eficiência, o que, reitere-se, não é garantido mas é mais provável, quando equiparado à gestão do Estado, onde, e passe a expressão, a culpa morre muitas vezes solteira.

No âmbito das privatizações não se pode dispensar a abordagem a uma outra questão central, à qual nem sempre é dada a atenção devida: a regulação. Embora as empresas saiam do domínio público, nem por isso passam a gozar de uma liberdade incondicional de movimentos. Existe, tem forçosamente que existir, um mecanismo de regulação dos privados. O problema reside no facto de esse mecanismo padecer de vários vícios. É relativamente fácil, ao privado, “capturar” o regulador para que este aja em seu benefício. Existe, e esse não é fenómeno isolado, a chamada “revolving door” na qual os agentes circulam do Estado para os privados, sempre na prossecução de interesses próprios. Existe até, a este propósito, quem questione a própria idoneidade das privatizações latu sensu, pondo em causa, sinteticamente, se estas são levadas a cabo pelos superiores interesses do Estado ou dos seus agentes, que acabam misteriosamente por vir a ocupar altos cargos de administração das empresas que eles próprios ajudaram a retirar da esfera pública.

Partindo do todo para a parte, existem dois sectores particularmente sensíveis nesta temática das privatizações: a Saúde e o Ensino.
Diversos de todos os outros, aos quais de forma mais justa ou menos justa se aplica toda a teorização anteriormente exposta, os sectores da educação e da saúde são de tal modo suis generis que merecem uma atenção particular em sede de debate sobre as privatizações. Não obstante tal evidência, não se pode colocar ambos os particulares sectores dentro do mesmo saco. Estamos a falar de áreas que, embora sejam frequentemente abordadas em conjunto, têm, cada uma delas, características muito próprias.
Assim, a educação. Nos tempos recentes tem sido um tema bastante em foco, nomeadamente em função da polémica recente em torno de uma hipotética cobrança de propinas no ensino secundário. Embora tenha, naturalmente,  a minha opinião sobre o tema, não parece que seja exactamente o problema em causa em sede de privatizações. 
À luz da educação é da maior relevância estabelecer desde logo uma bipartição entre o ensino superior e o restante ensino, primário, básico e secundário. No Ensino superior é de senso comum que é na Universidade Pública que se encontra a excelência do conhecimento, da investigação, e da produção científica. Salvo honrosíssimas excepções, em Portugal, o ensino superior privado tem sobre si todo um rol de desconfiança e, arriscaria, de algum descrédito. Em função disso, seria um absurdo admitir para o sector universitário a extinção do seu lado público. Resta, portanto, o ensino até ao 12º ano de escolaridade. E é sobre este que recai a essencialidade do debate no tocante à privatização do ensino.
Estudos recentes indicam que sairia mais barato ao Estado pagar a mensalidade num colégio a cada criança que tem na escola pública em vez de suportar todos os custos de estrutura que tem com esta. E este dado é muito importante no âmbito deste debate. Numa análise objectiva, é mais conveniente ao Estado contratar com privados o ensino dos seus jovens. Numa época em que assistimos a um envelhecimento da população, são muitas as escolas que têm um número de alunos que não justifica a sua existência. Além disso, é conhecida a questão do lobby (permitam-me que o designe como tal) da classe docente, que coloca um tremendo peso sobre os ombros do Estado. Com um ensino privado terminaria o conceito de “emprego para a vida” que tanto tem prejudicado a eficiência e qualidade do ensino em Portugal. Mas, claro está, toda esta análise é válida sob um prisma meramente objectivo, que deixa de fora as questões sociais.
A materialização desta ideia de privatização do ensino dá-se com a ideia do cheque-educação. Debrucemo-nos sobre algumas das críticas feitas a esse modelo para analisar o impacto social de uma eventual privatização do sector da educação. O princípio dos School Vouchers é relativamente simples: o Estado paga a Educação, e os pais escolhem onde querem colocar os seus filhos a Estudar. Uma das críticas dirigidas a este modelo é a inevitabilidade de competição entre as escolas, o que acabaria por conduzir a desigualdades, o que perfaria a “escola para ricos” e “escola para pobres”. Mas analisemos a actual realidade: O fundamento principal, pelo qual se crê que devem existir escolas públicas, é o de que elas proporcionam uma alegada igualdade de oportunidades, e favorecem desse modo a coesão social, indispensável à manutenção de uma democracia estável. Pergunta-se: isso existe, actualmente?  Quando, em 1955, Milton Friedman constatou que o monopólio do Estado na educação estava a produzir efeitos indesejados, propôs um retorno à liberdade de escolha da educação por parte dos pais. Argumentava Friedman que seria muito mais eficaz e justo, se em vez de ser o Estado a financiar directamente as escolas, desse a cada criança, por via das suas famílias, um cheque para pagar a sua educação.
Não querendo tomar partido por esta posição, confesso que esta solução, apesar de um pouco radical, não me choca, ainda para mais atendendo à quantidade de vícios que existem no nosso sistema de escola pública hodiernamente. Não parece que o actual modelo propicie a igualdade de oportunidades, que deveria ser o principal desígnio da escola pública. O cheque-educação poderia fomentar um modelo que, embora desigual, se baseasse, por exemplo, no sucesso escolar para estabelecer o acesso às escolas melhor cotadas. É esse o modelo que funciona ao nível do ensino superior e, na minha modesta opinião, é o sistema que mais se aproxima da justiça.
Assim, reitere-se, conclui-se que os modelos de ensino superior e ensino regular são amplamente distintos. Se não faz sentido repensar, pelo menos estruturalmente, o ensino superior público em geral, o mesmo não se pode dizer quanto à vertente primária, básica e secundária da nossa educação.

Já a saúde parte de pressupostos bem distintos da educação. No sector do ensino existe uma previsibilidade e regularidade nos custos. Estes representam somas manifestamente menos avultadas, e destinam-se a uma parcela muito bem definida e circunscrita da população. Posto isto, no tocante a ensino e educação, não convém comparar o incomparável.
Como é sabido, as clínicas e hospitais privados existem e, muitos deles, dentro dos serviços que prestam, fazem-no com qualidade. Têm, inclusivamente, em muitos casos, tratamentos mais personalizados e (acima de tudo) expeditos quando comparados com os homólogos públicos. A grande questão, na saúde, não estará tanto ao nível dos serviços que os privados prestam mas sim nos serviços que os privados não prestam, porque não podem, e porque não lhes é racional prestar. Trata-se, no fundo, daquilo que tomarei a liberdade de designar por “saúde não lucrativa”. Se, naturalmente, prestar serviços de clinica geral, exames regulares, cirurgias de relativa simplicidade, é bastante lucrativo para os privados, o mesmo não se poderá dizer de outro tipo de tratamentos. Existem determinados exames e tratamentos que, pelo seu avultado custo, nunca os privados os providenciarão. Estamos, porém, na presença de serviço público no seu mais avançado estádio de evolução. O investimento do Estado, por via dos seus hospitais públicos, neste tipo de diagnósticos e tratamentos, é a mais importante e nobre finalidade que, decerto, os contribuintes estão dispostos adar aos seus impostos. Assim, e porque estamos a falar de vidas humanas, não se pode tratar com leviandade uma hipotética privatização da saúde. Muito se fala que as privatizações constituem o alienar, por parte do Estado, dos seus “anéis”. Pois bem, no tocante à saúde parece-me que se trata não já na venda dos anéis, mas sim dos próprios dedos. Mas sem esses já não fará sentido existir Estado e, como tal, a última área relativamente à qual o Estado se poderá eximir das suas funções será a saúde. E isto aplica-se mesmo em qualquer dos modelos de Estado que o século XX preconizou. Posto isto, e à falta de melhor opinião, a meu ver, independentemente de eventuais ajustes que se façam à gestão pública dos hospitais, será impensável uma privatização semelhante à que se pode  equacionar ao nível da educação.

Posto isto, e também porque o post já vai longo, cabe concluir.
O tema é controverso, não gera consenso e cada orientação ideológica tem as suas ideias (passe a redundância), que no entanto não respondem a todas as perguntas. Os cidadãos, contudo, apenas procuram respostas.
De facto parece haver um repensar das tarefas do Estado, agora que o mundo Ocidental vai sofrendo os danos colaterais de décadas de loucura. Mas esse repensamento não pode esquecer aquele que é o maior objectivo do Estado: a defesa dos superiores interesses dos cidadãos. Esses, por seu turno, não podem esquecer que o Estado não é um “pai”. E mesmo para os que acham que o é, terão forçosamente que colocar em stand-by essa ideia porque neste momento o Estado não pode ser mais que um “tio afastado”.  Mas até os tios afastados têm obrigações para com os seus sobrinhos. É o Estado Garantia.
E o que cabe nesse Estado Garantia? Tem-se visto que cabem cada vez menos os serviços não fundamentais e que, mesmo os que o são, tendem progressivamente a deixar de o caber. Mas será que tem que ser assim? Na minha humilde opinião, se faz sentido o Estado desfazer-se de empresas das quais dificilmente retirará lucro e cujas finalidades públicas conseguirá alcançar por preços bem mais modestos (não alimentando polémicas – a RTP?), já não consigo encontrar a mesma lógica na alienação de empresas que podem sem grande dificuldade dar lucro e vir a ter grande importância tanto a nível económico, como social. Concretizando – fará sentido abdicar da TAP? Aceita-se que o nosso tio afastado não tenha que gastar dinheiro para que tenhamos mais dois canais de televisão, particularmente quando lhe sai tão caro, mas será que faz sentido que se desfaça de uma empresa de família na qual temos orgulho, que nos pode dar lucro, e que ainda por cima tem o nosso nome e as nossas cores, representando-nos de forma tão digna no exterior? Passe a simplicidade das metáforas, é importante reflectir sobre tudo isto...
E, a fazê-lo, será esta a altura indicada? Que Portugal necessita de liquidez para ontem não constitui novidade, mas o desespero nunca é bom conselheiro. Neste momento não existe capital português com capacidade para concorrer às nossas empresas públicas. Estas irão forçosamente parar a mãos de estrangeiros, que as conseguirão a preços excessivamente simpáticos e que retirarão da nossa equação fiscal boa parte das suas contribuições. Será isso positivo?
Não havendo respostas certas nem erradas neste âmbito, existe certamente o dever de nós, estudantes, reflectirmos sobre isso. No curso de Direito, e particularmente em cadeiras como Direito Administrativo, temos a oportunidade de debater questões da maior relevância como esta. Durante décadas foi da classe estudantil que saiu o mais refinado e inovador pensamento para o país. Como tal, e sabendo dos desafios que enfrenta a nossa geração, considerei oportuno despedir-me do primeiro semestre no que ao Direito Administrativo diz respeito com esta abordagem que, ao fim e ao cabo, sobrevoa uma boa parte daquilo que foi o nosso debate nos últimos dois meses e meio.

Tiago Quaresma,
                                                                                                                                                   Nº22115 

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