sábado, 8 de dezembro de 2012

Constituição, Autarquias e Poder Local - o Presente e o Futuro


Nuno Miguel Igreja Matos, nº22102

O Poder Local destaca-se como um dos institutos mais estáveis da Constituição, com escassas alterações de grande relevo, e é, por isso mesmo, uma das maiores vitórias da Revolução de Abril. A Constituição de 1976 inaugurou, nos primeiros anos, uma nova fase de intervencionismo no Poder Local, assente numa descentralização que mobilizou a participação dos cidadãos. Gradualmente assistiu-se a um processo de dinamização da vida das autarquias locais assente numa lógica político-partidária, legitimada por um consenso na premência de edificação de novas infra-estruturas e utilidades, em nome de uma maior qualidade de vida, possivel graças a uma expansão económica. Mais recentemente, em particular desde o aditamento de um princípio da subsidiariedade no art. 6º, assiste-se a uma prática de redistribuição das tarefas entre o Estado e as autarquias, o que, a par com uma cada vez maior promiscuidade entre a esfera política e administrativa, tem levantado questões relativas à efectiva prossecução dos interesses locais e consequente dúvida na concretização dos preceitos constitucionais. As dificuldades financeiras despoletadas pela crise de 2008 vieram ainda impor um exercício de contenção no Estado que, inevitavelmente, se contagiou à administração local, e pouco tardou até se principiar a esboçar um anseio de reforma, ambicionando maior eficiência e, sobretudo, menor despesa.
Perante este cenário, o entusiasmo de outrora com a garantia democrática de um efectivo Poder Local transformou-se num domínio turbulento, tornando-se imprescindível auscultar a condição de concretização hodierna do princípio constitucional da autonomia local, bem como elencar e arriscar soluções para os hodiernos desafios do Poder Local.

1 - O princípio da subsidiariedade, introduzido na revisão constitucional de 1997, está na origem de um “teste de subsidiariedade” que entende uma constante interrogação acerca das tarefas que podem ou não ser mais eficiente e utilmente prosseguidas pelas colectividades territoriais infra-estaduais – um exercício que traduz, logo à partida, uma inevitável aporia.
As respostas dadas têm ido, maioritariamente, no sentido de uma promoção da (re)centralização das tarefas, o que se pode pertinentemente justificar pela subjectividade inerente ao conceito de “interesses próprios por natureza”. Esta orientação tem sido, aliás, corroborada pela própria jurisprudência constitucional, que alega frequentemente uma inevitável concorrência de interesses estaduais e interesses locais em variadíssimas matérias, situação que acaba sempre por legitimar a intenção de intervenção do Estado. Quanto à autonomia local, a jurisprudência vai advertindo no sentido da manutenção de um “núcleo essencial” que garanta a mínima concretização do princípio numa expressão carecida de qualquer precisão e que pouco tem abrandado o exercício centrípeto do princípio da subsidiariedade pela Administração Central.
           
2 - É precisamente esta ideia de “manutenção de um núcleo essencial” para a autonomia local que deve ser analisada à luz das tendências actuais e que nos leva, inevitavelmente, à questão de saber se existem, de facto, interesses próprios por natureza na administração local que devam ser necessariamente prosseguidos por outra entidade que não o Estado; como acontece, aliás e numa comparação paralela com a administração autónoma, com os interesses próprios inequívocos das universidades.
            A grande diferença prende-se com o facto da administração autónoma universitária entender tarefas cientifico-pedagógicas reconduzíveis a liberdades de criação científica e de ensino plasmadas nos arts. 73º e seguintes da Constituição. Assim, estes preceitos vinculam positivamente o legislador a concretizar estes princípios, numa concretização a que chamaremos, seguindo Luís Pedro Pereira Coutinho, juridicamente conformadora. Por outro lado, na administração local autárquica, a garantia de descentralização administrativa garantida no 237º CRP surge remetida para regulação por lei, perpetuando à acção do legislador uma ampla liberdade de conformação que, em última instância, só está limitada pela já referida imprecisa fórmula de “manutenção de um núcleo essencial” – será então uma concretização politicamente conformadora.
           
3 - Chegamos assim à contemporânea tendência de diluição das competências das autarquias locais, assente, como refere Freitas do Amaral, numa dificuldade de separação entre zonas de interesse nacional e local, motivada ainda pelo âmbito constitucionalmente indeterminado das competências materiais das autarquias locais. Numa análise mais minuciosa, e voltando a Luís Pedro Pereira Coutinho, podemos inclusive estar a abrir portas a um cenário bem mais perigoso de esvaziamento das atribuições e competências da administração local.
Sérvulo Correia defende um entendimento segundo o qual o cerne do exercício de uma autonomia per se reside na titularidade de competências normativas primárias, expressas por um poder regulamentar discricionário próprio. Ora, a crescente e quase incessante tendência reguladora no Estado, transversal a quase todas as áreas afectas à vida local, levanta a pertinente questão de saber até que ponto não vem pôr em causa a autodeterminação dos entes locais, e se, por outro lado, não estará a reduzir os órgãos autárquicos a um mero papel executivo.
Em suma, a autonomia local depende da titularidade de uma discricionariedade normativa administrativa que seja insubjugável a qualquer regulação limitadora oriunda do Estado, ou, então, de uma garantia de certa margem de livre apreciação e decisão, sob pena de o conteúdo material inerente ao princípio constitucional da autonomia local ficar limitado a uma mera recepção de uma normação estadual que raramente irá aos interesses específicos de todas as populações territoriais locais.

3 – Há ainda a alinhar certas fragilidades no seio da administração local, em particular em sede do actual sistema de governo das autarquias locais, onde se tem desenvolvido um sistema de presidencialismo autárquico de contornos constitucionais algo duvidosos, uma vez que a Lei Fundamental nem sequer reconhece o presidente (tanto da junta da freguesia como da câmara municipal) como órgãos próprios. Para tal, muito contribui a efectiva falta de responsabilidade política dos órgãos executivos perante as assembleias representativas. Apesar da Constituição o impôr (239º/1 CRP), a eleição directa do executivo perante a assembleia acaba por o dotar de uma legitimidade eleitoral própria que dificulta a responsabilidade política perante o órgão deliberativo colegial e perpetua uma concentração de poderes na figura do presidente. Esta situação exemplifica um curioso caso de triunfo da realidade sobre a Constituição, da qual emerge, não raras vezes, um sistema íntimo com um “superpresidencialismo”.
Consequentemente, há duas opções lógicas que devem ser tomadas, em nome da manutenção e respeito para com a força normativa da Constituição: ou se reverte a situação para moldes mais próximos do constitucionalmente estabelecido, nomeadamente através da adopção de um sistema de governo de assembleia – o que parece de difícil exequibilidade – ou então opta-se por uma alteração à Constituição, com vista à institucionalização de um presidencialismo local genuíno, o que pressuporia ainda a separação entre a assembleia e o executivo, por forma a que permitisse aos eleitores diferentes escolhas.

4 – Do exposto, resulta uma perda do estatuto constitucional e da própria consistência política do Poder Local, relevando, por isso, relançar uma discussão em torno da matéria, através de algumas propostas que, embora algo avulsas, comungam no objectivo da edificação legal de um verdadeiro Poder Local, assente numa autonomia que se traduza na titularidade de competência normativas primárias e que faça justiça à prática de governação local hodierna.
            Em primeiro lugar, e recorrendo ao Direito Comparado, talvez fosse adequado dotar as autarquias de uma certa autonomia estatutária, nos termos da lei, como ocorre nos municípios italianos e, a nível interno, com as próprias universidades.
            Uma outra ambiciosa, mas interessante proposta, frequentemente veiculada por Freitas do Amaral, seria um projecto de (re)codificação do direito local, com vista a unificar os princípios e principais orientações dispersas por leis avulsas, estabilizando ainda certas matérias, particularmente, como referido, ao nível do sistema de governo local.
            Igualmente interessante seria trazer de volta a participação cívica local, através, por exemplo, da obrigatoriedade de referendo para certas decisões essenciais, como a aprovação do Plano Director Municipal ou de investimentos de grande impacto. Embora o instituto do referendo local esteja pouco presente na história local recente, a verdade é que a sua imposição poderia servir de alavanca para o ressuscitar de um maior dinamismo e eficiência na percepção, pelos órgãos locais, dos interesses das suas populações, bem como num mecanismo de combate a uma certa entropia no controlo local político-partidário, muitas vezes promovendo candidatos nem sequer pertencentes à própria colectividade territorial.

5 – Em conclusão, há um défice de realização constitucional em matéria de Poder Local que obriga a que, nos próximos tempos, ocorra uma reforma do estatuto legal das autarquias locais. A proposta de reforma da administração local, em breve em debate no Parlamento, traduz essa mesma necessidade.    
Numa altura em que pouco se percebe se as intenções do Governo têm na origem o imperativo de cortes financeiros ou se se reconduzem, efectivamente, a uma reforma estrutural, com vista a potencializar a coordenação Estado-autarquias nos próximos anos, importa mais que nunca apelar a uma participação cívica nas decisões que vierem a ser tomadas, não só na demanda de uma decisão com maior legitimidade democrática (e, por isso, mais vocacionada para um compromisso de sucesso), mas sobretudo na luta contra um indesejável esvaziamento das competências locais.

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