Nuno Miguel Igreja Matos, nº22102
O Poder Local destaca-se como um dos institutos mais estáveis
da Constituição, com escassas alterações de grande relevo, e é, por isso mesmo,
uma das maiores vitórias da Revolução de Abril. A Constituição de 1976
inaugurou, nos primeiros anos, uma nova fase de intervencionismo no Poder Local,
assente numa descentralização que mobilizou a participação dos cidadãos.
Gradualmente assistiu-se a um processo de dinamização da vida das autarquias locais
assente numa lógica político-partidária, legitimada por um consenso na
premência de edificação de novas infra-estruturas e utilidades, em nome de uma
maior qualidade de vida, possivel graças a uma expansão económica. Mais
recentemente, em particular desde o aditamento de um princípio da
subsidiariedade no art. 6º, assiste-se a uma prática de redistribuição das
tarefas entre o Estado e as autarquias, o que, a par com uma cada vez maior
promiscuidade entre a esfera política e administrativa, tem levantado questões
relativas à efectiva prossecução dos interesses locais e consequente dúvida na
concretização dos preceitos constitucionais. As dificuldades financeiras
despoletadas pela crise de 2008 vieram ainda impor um exercício de contenção no
Estado que, inevitavelmente, se contagiou à administração local, e pouco tardou
até se principiar a esboçar um anseio de reforma, ambicionando maior eficiência
e, sobretudo, menor despesa.
Perante este cenário, o entusiasmo de outrora com a garantia
democrática de um efectivo Poder Local transformou-se num domínio turbulento, tornando-se
imprescindível auscultar a condição de concretização hodierna do princípio
constitucional da autonomia local, bem como elencar e arriscar soluções para os
hodiernos desafios do Poder Local.
1 - O
princípio da subsidiariedade, introduzido na revisão constitucional de 1997,
está na origem de um “teste de subsidiariedade” que entende uma constante
interrogação acerca das tarefas que podem ou não ser mais eficiente e utilmente
prosseguidas pelas colectividades territoriais infra-estaduais – um exercício
que traduz, logo à partida, uma inevitável aporia.
As respostas dadas têm ido, maioritariamente, no sentido de
uma promoção da (re)centralização das tarefas, o que se pode pertinentemente
justificar pela subjectividade inerente ao conceito de “interesses próprios por natureza”. Esta orientação tem sido, aliás,
corroborada pela própria jurisprudência constitucional, que alega
frequentemente uma inevitável concorrência de interesses estaduais e interesses
locais em variadíssimas matérias, situação que acaba sempre por legitimar a intenção
de intervenção do Estado. Quanto à autonomia local, a jurisprudência vai
advertindo no sentido da manutenção de um “núcleo
essencial” que garanta a mínima concretização do princípio numa expressão
carecida de qualquer precisão e que pouco tem abrandado o exercício centrípeto
do princípio da subsidiariedade pela Administração Central.
2 - É
precisamente esta ideia de “manutenção de
um núcleo essencial” para a autonomia local que deve ser analisada à luz
das tendências actuais e que nos leva, inevitavelmente, à questão de saber se
existem, de facto, interesses próprios
por natureza na administração local que devam ser necessariamente
prosseguidos por outra entidade que não o Estado; como acontece, aliás e numa
comparação paralela com a administração autónoma, com os interesses próprios inequívocos
das universidades.
A grande diferença prende-se com o
facto da administração autónoma universitária entender tarefas
cientifico-pedagógicas reconduzíveis a liberdades de criação científica e de
ensino plasmadas nos arts. 73º e seguintes da Constituição. Assim, estes
preceitos vinculam positivamente o legislador a concretizar estes princípios,
numa concretização a que chamaremos, seguindo Luís
Pedro Pereira Coutinho, juridicamente
conformadora. Por outro lado, na administração local autárquica, a garantia
de descentralização administrativa garantida no 237º CRP surge remetida para
regulação por lei, perpetuando à acção do legislador uma ampla liberdade de
conformação que, em última instância, só está limitada pela já referida
imprecisa fórmula de “manutenção de um
núcleo essencial” – será então uma concretização
politicamente conformadora.
3 - Chegamos
assim à contemporânea tendência de diluição das competências das autarquias
locais, assente, como refere Freitas do
Amaral, numa dificuldade de separação entre zonas de interesse nacional
e local, motivada ainda pelo âmbito constitucionalmente indeterminado das
competências materiais das autarquias locais. Numa análise mais minuciosa, e
voltando a Luís Pedro Pereira Coutinho,
podemos inclusive estar a abrir portas a um cenário bem mais perigoso de
esvaziamento das atribuições e competências da administração local.
Sérvulo Correia defende um entendimento segundo o
qual o cerne do exercício de uma autonomia per
se reside na titularidade de competências normativas primárias, expressas
por um poder regulamentar discricionário próprio. Ora, a crescente e quase
incessante tendência reguladora no Estado, transversal a quase todas as áreas
afectas à vida local, levanta a pertinente questão de saber até que ponto não
vem pôr em causa a autodeterminação dos entes locais, e se, por outro lado, não
estará a reduzir os órgãos autárquicos a um mero papel executivo.
Em suma, a autonomia local depende da titularidade de uma
discricionariedade normativa administrativa que seja insubjugável a qualquer
regulação limitadora oriunda do Estado, ou, então, de uma garantia de certa
margem de livre apreciação e decisão, sob pena de o conteúdo material inerente
ao princípio constitucional da autonomia local ficar limitado a uma mera
recepção de uma normação estadual que raramente irá aos interesses específicos
de todas as populações territoriais locais.
3 – Há
ainda a alinhar certas fragilidades no seio da administração local, em
particular em sede do actual sistema de governo das autarquias locais, onde se
tem desenvolvido um sistema de presidencialismo autárquico de contornos constitucionais
algo duvidosos, uma vez que a Lei Fundamental nem sequer reconhece o presidente
(tanto da junta da freguesia como da câmara municipal) como órgãos próprios. Para
tal, muito contribui a efectiva falta de responsabilidade política dos órgãos
executivos perante as assembleias representativas. Apesar da Constituição o
impôr (239º/1 CRP), a eleição directa do executivo perante a assembleia acaba
por o dotar de uma legitimidade eleitoral própria que dificulta a responsabilidade
política perante o órgão deliberativo colegial e perpetua uma concentração de
poderes na figura do presidente. Esta situação exemplifica um curioso caso de
triunfo da realidade sobre a Constituição, da qual emerge, não raras vezes, um
sistema íntimo com um “superpresidencialismo”.
Consequentemente, há duas opções lógicas que devem ser
tomadas, em nome da manutenção e respeito para com a força normativa da
Constituição: ou se reverte a situação para moldes mais próximos do constitucionalmente
estabelecido, nomeadamente através da adopção de um sistema de governo de
assembleia – o que parece de difícil exequibilidade – ou então opta-se por uma
alteração à Constituição, com vista à institucionalização de um
presidencialismo local genuíno, o que pressuporia ainda a separação entre a
assembleia e o executivo, por forma a que permitisse aos eleitores diferentes
escolhas.
4 –
Do exposto, resulta uma perda do estatuto constitucional e da própria consistência
política do Poder Local, relevando, por isso, relançar uma discussão em torno
da matéria, através de algumas propostas que, embora algo avulsas, comungam no
objectivo da edificação legal de um verdadeiro Poder Local, assente numa
autonomia que se traduza na titularidade de competência normativas primárias e
que faça justiça à prática de governação local hodierna.
Em primeiro lugar, e recorrendo ao
Direito Comparado, talvez fosse adequado dotar as autarquias de uma certa
autonomia estatutária, nos termos da lei, como ocorre nos municípios italianos
e, a nível interno, com as próprias universidades.
Uma outra ambiciosa, mas
interessante proposta, frequentemente veiculada por Freitas do Amaral, seria um projecto de (re)codificação do
direito local, com vista a unificar os princípios e principais orientações
dispersas por leis avulsas, estabilizando ainda certas matérias,
particularmente, como referido, ao nível do sistema de governo local.
Igualmente interessante seria trazer
de volta a participação cívica local, através, por exemplo, da obrigatoriedade
de referendo para certas decisões essenciais, como a aprovação do Plano Director
Municipal ou de investimentos de grande impacto. Embora o instituto do
referendo local esteja pouco presente na história local recente, a verdade é
que a sua imposição poderia servir de alavanca para o ressuscitar de um maior dinamismo
e eficiência na percepção, pelos órgãos locais, dos interesses das suas
populações, bem como num mecanismo de combate a uma certa entropia no controlo local
político-partidário, muitas vezes promovendo candidatos nem sequer pertencentes
à própria colectividade territorial.
5 –
Em conclusão, há um défice de realização constitucional em matéria de Poder
Local que obriga a que, nos próximos tempos, ocorra uma reforma do estatuto
legal das autarquias locais. A proposta de reforma da administração local, em breve
em debate no Parlamento, traduz essa mesma necessidade.
Numa altura em que pouco se percebe se as intenções do Governo
têm na origem o imperativo de cortes financeiros ou se se reconduzem,
efectivamente, a uma reforma estrutural, com vista a potencializar a coordenação
Estado-autarquias nos próximos anos, importa mais que nunca apelar a uma
participação cívica nas decisões que vierem a ser tomadas, não só na demanda de
uma decisão com maior legitimidade democrática (e, por isso, mais vocacionada
para um compromisso de sucesso), mas sobretudo na luta contra um indesejável
esvaziamento das competências locais.
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